quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Daltonismo Amoroso

Victor Rocha Nascimento

O que faz um desgraçado romântico quando descobre que o amor não existe? Quem estuda a natureza humana excessivamente acaba fragmentado na realidade absurda do mais puro e físico das coisas. Quem conhece bem uma árvore passa a se questionar sobre os motivos e fundamentos do amor.
Me perguntava sobre o que era esse sentimento terrível que me incomodava agora por faltar e tentava entendê-lo da forma mais mecânica possível. Não havia dúvidas de que era um mito, uma invenção do homem... Mas que fosse o mais útil, belo e honroso dos mitos também.
Perdido, parei de me perguntar e tornei a preocupação pública. Daí ela me respondeu, mesmo a par da complexidade real da minha aflição:
- O problema é que a intensidade que as vezes a gente busca não é a mesma que a gente espera (recebe?)... é como uma escala de cores!
- Se por isso, meu amor é tipo um Flicts.
- Flicts?
- Sim. Do Ziraldo. "Flicts é uma cor de que ninguém gosta, ninguém lê, da qual ninguém lembra", mas no final, de forma completamente irônica, a Lua é Flicts.
- Ah! É verdade. Já me lembrei.
- Você sabe o que a Lua representa pra mim, apesar de tudo...
- Será que então você sofre daltonismo amoroso?

A conclusão me pareceu tão fantástica que preferi acreditar que sim. Ainda não tenho respostas exatas para o que é o amor e muito menos sobre o meu papel com ele. Tento curtir da maneira mais pura e só. Depois de tantos procurarem definir das formas mais intensas e criativas, eu não deveria me atrever, mas faço por uma inquietude própria, faceira. Talvez isso seja parte do que definem como estar amando.
Se mito do homem ou graça de Deus, não importa tanto. De uma maneira ou de outra, estou seguro e satisfeito nessa constante utopia comum, que consegue ser tão física quanto ilusória, encantando qualquer alma cética.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Na espera fracionada o inevitável encharcado.

Victor Rocha Nascimento

Quando chegou em casa, passou primeiro pelo cheiro. Já envenenado de odor, tomou ciência de que ela estava no quarto como quem espera pelo dono para se divertir.
Dobrou as bainhas da calça enquanto também dobrava os minutos para ampliar a aflição da espera. Fazia tempo que não se viam ou pelo menos aparentava fazer. Ele ajeitava a blusa já molhado em emoção, mas sem deixar escapar um suspiro que fosse notável. A indiferença fazia parte da sua sedução. Ela também sabia esperar, ainda que de mãos suadas e unhas roídas, sem fazer barulho.

Cadenciando o desejo, ele aproveitava os segundos de dor. Ela angustiava com o coração espetado no ponteiro. Munido de opções, optava por não ser austero ao menos dessa vez e fazer do encontro uma piada doce. Ela, perdida da mente e corpo do rapaz, sonhava em se lambuzar do que lhe faltava. Era amargo enquanto não lhe vinha. Era quente. Já fervia.

Caminhava ele pela casa, sem os sapatos, escorrendo pelo piso frio, para fazer evidente sua presença. Ela mordia os panos da cama como se os ruídos dele fossem dias. Dava voltas e evitava, ainda que preocupado em incomodar. Contornava tapetes e chinelos. Ela era quente por natureza e o chão gelado contrastava com seu calor. Ele sabia. Hesitando, abriu a guarda antes do marcado.

Os olhos travaram e já era tempo. Ele, decidido em esbanjar a espera num próximo instante glorioso, entendeu que ainda valeria mais esperar. Ela, torturada pelo incerto, se jogou sobre seus ombros estalados e arranhou seus peitos como quem cava segurança. Estava certa de tudo e desfilava na falta do que não tinha julgo. Ele protelava no poder do artigo. Dominava meio que sem saber como.

As mãos se tocavam de leve e os corpos rosnavam ritmados um no outro. Pescoço torto, boca larga, pele macia e vapor nos olhos. O cheiro, o medo, a falta, o desejo e o carinho emplacavam em fraternidade. Os corpos se conheciam, tremiam, ansiavam e a mente firme forçava a espera. Quanto mais se fazia demorar, o sabor regozijava quieto por sugar. Mas o tesão virava raiva, o carinho descontrole e o certo atordoava.

Corpos colados, mãos firmadas, e cobranças verbalizadas. A espera só é boa quando saboreada mutuamente. Ela não entendia, implorava, contornava, redimia, estapeava... Ele sabia que iria dar merda. Melhor acabar com o sofrimento e cortar de vez a brincadeira que se revelara paralela. De corpos colados, beijados, ele finalmente cedeu, de jeito tão suave que mal se podia ouvir. A resposta também foi em silencio, só para casar. Assim finalmente terminavam o que na verdade tinha início. Selados, tornavam-se mais e seguiam só os dois.

domingo, 5 de dezembro de 2010

A Morena e o bufão

Victor Rocha Nascimento

Quem vê a Morena desfilando nas ondas de pedra, corre o risco de se apaixonar pelo que é puramente belo. De sedutor é viciante. Com o vento nos cabelos e na saia de pano, esbanja o dom de ser carioca e faz queixo de toda idade pousar no chão. De nariz em pé e rebolado de samba, a Morena tem noção exata do poder da sua natureza. É jovem, é forte, é moderna e decidida. Quando sorri é para atacar corações. Riso largo, definido, escroto e assassino. Riso certeiro, feroz, de quem sabe o que quer e conquista com olhar apertado. É graça de menina. É repleta uma mulher. É a boca perfeita que encaixa na orelha, na boca, no pescoço... É uma personagem, é uma lenda.

Quem vê o bufão deslocado pode imaginar que o garoto bobo do interior que se joga em cada canto, que deita nos becos e espera a barba crescer enquanto escreve frases sem futuro, está perdido em si e tentando descobrir o mundo. Um sonhador pós-moderno que se força a sobreviver mesmo sem espaço para respirar. É quase um escarro da cidade grande. Muda, procura, culpa. Pela displicência e falta de amor próprio, pode até fascinar. Pelo gosto estranho, amigos confusos e metodismo aflorado, chama a atenção. É quase uma personagem. É quase, é nada. Vem atrás de sabe-se lá o que. É ínfimo, meijengro, medonho, escroto, enferrujado. Nas ruas assassino culto, acuado, misterioso. No quarto é poeta romântico.

Entre dedos grafados e luz de três cores, um encontro de vazio. Se aproximam na distancia circunstancial dos contatos repentinos. Ela como ela, sendo ela e só ela. Ele como ele, sendo ele e só ele. Não posso ver maiores dificuldades, maiores desavenças e destinos trocados. Não posso ver maiores diferenças. Ela viu diferente.

No tormento da ação de riscos, nos falece da ponta o mal que prevemos de início. Limpo de cataclismos, deveria apenas sentir e ser e fazer. Deveria ser livre de se e dos outros. Desorientado e predestinado, não é possível. Deveria, e só. Não cabe ao homem formar nem escolher o coração que tem. Nada além de aceitar e tentar ponderar o óbvio e imutável.

No encontro em que cruzam olhos, bocas, corpos e signos, cruzam estrelas e o abençoar de morcegos na noite. Ritmos contestáveis foram mudando. A Morena do Rio quebra o paradigma de homem sério e sofrido do escritor renegado. Ele é o que reclama, condena, indefere, analisa, pondera razões. Ele é o frio que se apaixona, o louco que se condena. Perto da boca dela, ele não é nada. Já não é mais nada. Não existe o passado. Existe o bloco-do-prazer, o mandarim, o carmim.

Ah, Morena. Desse teu jeito de moleca, irritante e satírico, me perco ao inoculado temor das pernas. Não sei se te temo ou se a mim. Ah, Morena, não deveria ser assim. Por mais que te julgue mulher e que te veja em forma, nada mais que luz me toma. Ainda não vejo, não entendo, não te tenho. Queria fingir que pode ser tudo o que me parece. Queria te conter, me conter. Queria te contar, me poupar, engolir. Queria ter no olhar o que jamais entendi.

A Morena é o que é; e como morena, como carioca e como mulher, não se pode penetrar o tão fundo na mente quanto quereríamos pobres mortais. Ela só leva, protela, até gosta, se diverte e maneja. Ela quer futuro, quer emprego e quer o mundo. Mas morena também sonha, e por mais tortos que sejam os sonhos, sempre escorrem por um caminho que bifurca e reencontra, recose. Também é de sonhos que se faz a Morena, e de amor que quer viver.

E o que de novo pode em uma relação que já foi cantada em toda praça? A mim não importa e chuto que pensem eles o mesmo. Não importa quantas vezes o belo seja cantado, sempre soa suave, moderno. Sempre inveja e encanta. E que fim teria? Provavelmente o pior de todos, o mais sofrido, terrível. Mas como falar de fim se nem início existe? Nas relações ecoam sentidos difusos de certo e errado, sentidos de fim. Basta existir e o que é se sustenta.
Se existe um final, é a hora em que a gente ri.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

O garoto de Sustos e Chocolates

Victor Rocha Nascimento

Meio sentado, deitado, jogado num canto da Novo Rio lotada de feriado prolongado. Uma mochila estourada em roupas, cadernos e filmes. Ele com um pacote de biscoitos baratos, um copo de caldo de cana, e um livro de capa mostarda que o prendia e salvava da multidão barulhenta.
Um tipo físico até que bem modesto. Não tão magro, mas pouco trabalhado e nada levado a sério. Talvez praticasse esportes periodicamente, mas nada além de um hobby e certamente nada de academia. O casaco surrado e a blusa larga ajudavam.
Ela fitava de longe, driblando os corpos soltos que desfilavam pelo salão de embarque com os olhos tímidos e molhados. Estava realmente fascinada, mas não tinha nem pista do motivo. Coisa alguma nele lembrava qualquer moda conhecida. Talvez um tipo meio anos 80, meio grunge e de rocker sujo, com um piercing gasto no sub-canto esquerdo da boca. Certamente não fazia seu tipo. Nem raspava de tangente no seu gosto por homens-garotos. Mas, alguma coisa de charme-descaso, algum tom sofrido e seguro... Algo que a perseguia e era seu oposto, fizeram vidrar. Era mais para uma sombra ou um espelho. Talvez nisso, ela tivesse a atenção roubada num susto forte.
O susto maior foi quando se esbarraram na entrada do ônibus. Culpa dele. Desastrado e de cabeça baixa no livro. E assim, entre esbarrões e sustos, também foi com o encontro nos assentos colados, 19 e 20.
"Um chocolate amargo com flocos grossos de café! Uma bela definição!". Era uma das várias manias dela. Talvez a mais constante. Marcava sempre seus sentimentos e sensações com comparações exóticas, que envolvessem cheiro, cor e sabor bem definidos.
Insegura, nervosa e com as mãos trêmulas, molhadas, lhe perguntou sobre o livro aos gaguejos. O Livro, que ainda travava a atenção do garoto, talvez tanto quanto a atenção dela era travada por ele.
Nada de mais. Sem grandes frutos. Ele comentou um pouco sobre o autor, e falou rápido sobre alguns assuntos um tanto complexos e confusos dos quais a obra tratava. Não se sabe se por sua velocidade, se pela complexidade ou se pelo encanto de ouvir da voz, ela não entendeu nada além de algumas palavras soltas. Só sabia, agora, emitir sons monossilábicos que serviriam satisfatoriamente para qualquer pergunta mesmo sem significar nada. Eram gemidos tímidos, na verdade. "Uhh", "Uhum", "Ahh"... Toda a empolgação do menino estava em suas próprias palavras, que traduziam o sumo do livro... Para ela, não sobrou quase nenhuma atenção. Por pouco nem cruzaram os olhos. Logo ele voltaria a ter sua existência roubada por completa pelas letras serifadas do mostarda.
O Susto, de verdade, veio depois de um silencio funerário tomar conta de todo o ônibus e ela já havia desistido de tentar criar qualquer relação com o enredador desconhecido. O sujeito, ainda em um clima 'mundo-encantado', sacou da bolsa volumosa uma barra de chocolates. Pelo cheio da mochila, era óbvio que a barra já estava amassada e quebrada quase toda. Pouco importante. A questão é que a danada era idêntica à idealizada pela menina. Chocolate amargo, flocos fartos de café.

Seria o cheiro em comunhão secreta com o inconsciente? Seria sorte pura, coincidência? Seria lance espiritual, exotérico, exótico? Destino? Seria? Será quer seria lógico? Seriam mais 4h de viagem. Pensar; dormir; sonhar; tentar; esquecer.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Sombra e Chuva. O sonho para antes de amanhã.

Victor Rocha Nascimento

Como que por moda, num relance, um recorte, um romance, uma sorte, um momento perdido em voltar a sonhar. Desgraça é saber que, no fundo, se é.
Ela passa, só passa. Ela fica, só fica. Eu me banho em sua graça que se espalha no vento. Sou refugo, sou tormento, sou parte, sou resto. Sou público e ela o espetáculo. Sou amargo e ela o veneno.

Quem dera ter de perto esse sorriso
e que por sarro, cerrassem a mágoa e as dobras das mazelas.
E quando jeremiar a perdida doçura num castigo
Me descobrir refeito, enrolado nas suas canelas.

De receio se faz graça. Ainda que toque, que role, que rock, que choque, ainda que mais e que pouco me reste, é da graça do sonho e do sabor infantil de esperança que me nulo.
Desde o nascimento me tomou a fera, saqueou alma do corpo, me fez bobo, sereno, sonhador. Me fez preso, dependente de amor. Me fez homem, me fez gente.

Por certo despeito, o feito foi e eu teria lhe rendido
Para eterno desgosto, hoje me trombo
Sem ter, nem tentar, nem achar, me tornei cativo
Resta o sonho de choro doce e de encontro.

E aquela boca, aquela roupa, aquele cabelo, o sorriso no canto dos olhos. Aquele cheiro. Quem dera ser para mim. Que por instante, por defeito. Que por acaso, por brincadeira. Mesmo que fosse por outro caso, alguma besteira. Quem dera aquela voz no canto da orelha. E se um dia o sonho fosse sonho e de realidade despertasse outra vida, outra história. E se, em alguma verdade, desse para ser...

Ainda que minha dor seja dor de pouco valor
E que seja arrogante por amar minha própria mente
Espero em todo que possa ser em alguma
E que me surpreenda de meu pessimismo descrente.

Corpo na chuva, cadeia em vácuo. Já preso em rótulos, tomado por votos, gasto de mãos e cuspes devotos. Já sem esperanças, no sonho e nas lembranças está a felicidade, maior de todas as artes, que por pouco existe e se desfaz em tão pouco. Que é rouca e triste a própria. Que me engana por instinto, me faz seguir e tentar ser feliz, mesmo sozinho.


terça-feira, 24 de agosto de 2010

Argumento quebrado

Victor Rocha Nascimento

Deitado um banco duma praça, ou duma praia. A vida passa e eu fico. Eu duro, eu mergulho e sou eu mesmo. A vida fica e eu passo, como só.
Dormi essa noite com a santa. A santa encostada no meu peito. Incrível como que por milagre, mesmo pela manhã parecia santa. Ou é amor, ou dádiva, ou ação divina. Ou talvez seja tudo e seja tudo o mesmo. Ahh, era perfeita em tudo. Conseguia ser santa e pecadora por inteiro.
No final do segundo dia, já sabia que iria morrer.
O cheiro, o sangue, o beijo e a mão. São o que te define. São únicos. São fortes e puros. São graves e transbordam mitos e significados. Me marcaram.
A morte, o eterno, o instante e a escolha. A mortalidade do que se diz.
A normalidade do infeliz. O estado banal, natural do só.
Vento moleque, malandro, que arrasta os sonhos e os anos.
O tempo. E o que é?
O tempo. E serve, se serve, para que?
E o que é o tempo quando se existe?
E o que é o tempo depois de você?
Marcou, é eterno. É sempre e só é. Pobre do tempo que foi inventado para desgarrar, mas que é no fundo só um invento e de ferrugem morre junto com o homem. Mais dura o sonho, mais dura o desejo.
Quem ficou? Quem foi afinal? E quem morreu?
Não saberia dizer, também. Também não importa. Importante é o que foi, o que é e o que nasce no eterno para apodrecer impossível.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Nada mais. Quando se assassina um passado, renasce vazio.

Victor Rocha Nascimento

Esse povo já não tem mais alma
Deve ter perdido no caminho, talvez em algum barzinho, talvez sozinha num banco da praça, no jornal do gato, no remendo da saia da mulata.
Deve ter mesmo perdido, largado no descaso, de tanto preterindo, deixado de lado, soprando pro passado, desocupando espaço. Abrindo alas prum vazio de novidades imediatas, de enlatados sem graça, para ter tempo de engolir a mordaça e se fundir na massa.
O que era alma já é casa de traça, o que era identidade virou idealismo babaca, virou sonho em ressaca, criou cova e carapaça.
Esse povo sofrido hoje sofre sem raça, aceita murro na cara, fica mudo por nada, se acomodou com migalha. Se perdeu do próprio povo, da própria história, da memória e espera sentado, de cara pra tela, uma vida mais bela pra se recostar.
Aquela alma que era orgulho hoje é entulho que não serve pra nada. Aquilo que era o impulso das tropas hoje é chacota, é lorota ou está fora de moda, nem dá pra lembrar.
Quando se perde coisa importante, de valor inestimável, coisa louvável, laudável, de pura grandeza e notória pureza, há de se procurar. Refazer caminhos, lembrar das ideias, catar no ultimo lugar.
Ô povo, carente de coragem, que de tanto apanhar já perdeu a vaidade e se limita a respirar. Ô povo da impunidade, da verdade covarde, que lamenta a vida e se perde na triagem sem ter onde chegar.
Nada melhor do que voltar a ser qualquer coisa pra ter motivo, besta que for, pra voltar a sonhar. Pra voltar a marchar. Pra voltar a acreditar. Pra voltar a lutar. Pra voltar.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Por ser divíno. Do mesmo coadunado , o outro indivisível e unitário.

Victor Rocha Nascimento

Era assim que eu vinha
Como um doente viciado em coçar feridas
Como uma benção de mãos suadas
Como uma peste de olhos pregados
Como uma criança que não aprendeu a berrar
Era assim que ela chorava
Como quem, com a dor, encontra alegria
Como quem faz música aos surdos
Como quem se desespera por companhia
Como mulher que renasce num altar

Com minha chegada, atenta porém apressada, calada porém sedenta, ela resistiu, valente, ao sal dos olhos. Com sua dor inevitável, se desfez. Rasgou a alma em duas e me cobriu do frio da falta.
Por mais que fosse dela a dor que nos criou, era minha a doença e seu amor restaurou. Fomos metades da mesma história, fomos retratos da mesma sala, entendemos a mesma dor, dividimos a estrada, passamos a ser outro. Nos transformamos em sentir, viramos existir.

Somos marcados, costurados, queridos, condensados, temidos, calados, sofridos e caçados. Somos ouvidos, vento, somos soprados. Somos amantes, amigos, somos presente, somos roubados. Somos família, somos nomeados, somos intriga. Seguimos ligados, mesmo operados.

Já que o tempo não termina, e nos maltrata com severidade, resolveu nos lançar à frente, como quem arremessa ao lixo, brinquedos velhos. O rancor dos ponteiros nos ameaçou, nos julgou aberração, e bem que tentou afrouxar do mundo. Nós, pobres um, e pobres existências, mudamos com velocidade imposta.
Mas nós, por sermos apenas um plural do nó de nossas vidas, continuamos sempre juntos. Ainda que o espaço trancasse longe nossos corpos, as almas se encontravam em outro plano, em outro espaço. Lá, onde estamos sempre juntinhos, e somos sempre sou.

Não são gêmeas tão pouco se completam. Apenas é e não são. Uma alma dividida entre duas cascas e unida em eternidade. Nos sentimos, nos vemos, nos tocamos, nos amamos, assim como somos, assim por sermos, assim, por ser o plural só metáfora escondida nos cantos onde nem as palavras e nem os enganos podem se enfiar.
No fim, que não há de existir, não há nem o que esperar ou reencontro que falte. Na verdade, ainda somos o mesmo e nunca saímos do nosso lugar.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Folha riscada sob olhos de prata.

Victor Rocha Nascimento

Lá se vai mais um papel amassado, ocupar o canto empoeirado do quarto. Escondido no meio, aquilo que não era para ser, que não foi dessa vez.
Sentimento engolido, retido, mal escrito. Sentimento perdido, decretado, parido, arruinado, letrado e fudido no meio da insensatez.
No alto, um Cristo. Em baixo um rio. No meio, um quarto vazio. Um papel amassado num canto frio. A lembrança do que se desfez.
São como dois olhos de prata que me fitam, me guardam, me guiam. Dois olhos de prata sobre mim, forçando uma embriaguez.
Nisso, o sangue apimenta, a vida dá um guenta e solução é ficar só. A solidão me deu um nó. Nada mais normal do que viver consigo mesmo. Viciando, nada pior. Uma luz à vocês.
Me olham, estudam, imitam, censuram. Uma montanha de reciclagem no que me rasuro. Olhos de prata fissurados na minha estupidez.
Risco, rabisco e os olhos me gritam. Mudo, recuo, as letras me evitam. O papel dá chilique. Da caneta ao clique, me inspiro em surdez.
Com um sonho inacabado, um suspiro aliviado, um choro consolado, um rito consagrado, ou um cobertor embolado, requento a algidez.
Inspiro meu cansaço e cubro as dores do fracasso. Reviro meu telhado, invento outro parágrafo. Grafo sentidos com polidez.
Sangue, lágrima e tinta. Olhos de prata e folha limpa. A imaginação brinca. Brota, morta, uma rima. Vira fato o que sentia. Escrotiza a língua e melodia. Interpreta, manipula, escolhe, regula. Um motivo novo se contrafez.

sábado, 19 de junho de 2010

Ilusionexistir. Era ela que não era. Eramos eu.

Victor Rocha Nascimento

Não é suportável o cheiro nem nojo do jeito que era. Assombrava fera.
Mas está tudo certo, tudo entendido e gravado em ponto cego, preciso.
Estou contente na certeza de que vim de outro mundo. Como dos restinhos, sem ter que acabar com meus princípios. Com minh'alma de guerreiro branco e minha cara de vagabundo.
Contei um passado de sonhos docês que me cortaram em física pura. Alimentei minhas dores com o receio de uma vida mais dura. Não sei se acerto, se sou certo, se é certo. Apenas sou limpo. Vivo em mim e nada sinto.
É bom percorrer o mundo em sorte, ver de perto a morte, sentir o gosto do sal e saber que tudo faz a gente ser mais. É bom perder, sofrer e saber que foi feito por um fim. É bom saber escolher e ter motivos. É maravilhoso poder me descobrir e te entender em mim.

Chegou a hora das grandes notas saltarem feito flechas. E que os temores nos pactos por horas renasçam e se tornem mais que simples medidas nas brechas.
Chegou o tempo do novo e do banal sustentado entre eras. É hora do velho voltar no tempo e do puro cair por terra. Já se fez o momento da idiotia se redimir.
É sobre alguém que sente mais do que pretende, e, descontente, mente e ressente as vontades com remendo. Tenta se limitar com o coração que o prende e acaba descrente do próprio sentimento.
Se droga de pobreza e se alimenta de solidão. Respira coitadices e se banha de fraquezas cômodas como se tivesse razão.
É sobre você.
Por que você é só por querer ser. Por que você mente para tentar se preencher.
Não faz sentido sustentar essa trama de gozos retidos num pedestal raso. Não faz sentido que se persista numa existência tão pequena e tão trancada em descaso. Se por isso, não vale sequer existir.
Tudo que somos e o que podemos ser. Todo o mundo, tudo que existe e o que vai além. Tudo deixa de importar perante você. Tudo é efêmero quando recostado na crença rasteira. Tudo perde quando se acomoda em ser alguém.
Quando não há vida, resta morte. Quando não há saída, resta a sorte. Quando estanca a ferida, fica o corte. Quando a mente está perdida, renova no choque. Quando tudo é despedida, melhor saber ser forte.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Do monte. Do todo. De si.

Victor Rocha Nascimento

Montes de saliva que escorrem pela boca. Mirava o frango sem respirar, mantendo ritmo nos pulsos, correndo o sangue em todo corpo.
Montes de sonhos que escorriam dos olhos. Mirava a moça sem respirar, mantendo ritmo nos pulsos, correndo lava em todo o corpo. Transbordava pelas orelhas.
Imigrante de nuvens de algodão. Caçador dos temidos monstros, das quimeras mal-humoradas com espetos nas patas. Rei do mundo que fundou. Caçador de milagres, de motivos. Imigrante de nuvens de escolhas. Rei de si. Rei de nada.
Curtia o sabor do jeito, do cheiro, da ilusão. Acompanhava de perto o contraste do imperfeito, escrevia contos por frustração.
Sonhava amar. Se forçava a sonhar.
Era por ela nele mesmo. Era por ele, indignado, em choro seco. Era temido por roer a lógica, deslumbrado por emoção. Todos cantavam sua glória, mas não havia quem pudesse suportar sua existência nem entender sua solidão.
O homem não passa de corpo empurrado pelo que se contesta. O homem é massa cravada em homem, regada em homem, moldada em homem e temperada de resto. É um tudo em que nada compete e que em nada se faz. Naturalmente perverso no mesmo.
Só mais um homem. Mais um perdido em meios, entre perdidos, entre questões. Apenas quer achar um lugar, um motivo. Apenas quer ser, ainda que não seja. Apenas quer e quer um motivo para querer.

Litros de sangue escorriam pelo peito. Mirava o futuro sem respirar, desregrando o ritmo dos pulsos, correndo marcas de tempo por todo o corpo.
Litros de sonhos escorriam pelo peito. Mirava a alma sem ter mais ar, sem sentir o ritmo dos pulsos, correndo em seu próprio corpo. Transbordava sobre todos os outros.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Instante em gelo

Victor Rocha Nascimento

Agora sinto o cheiro do gelo. Sinto como se fosse tudo e a medida se contorce atrevida. Agora não sinto as pontas dos dedos.
Agora lambo as feridas num vício de metal. Vendo meu passado e comemoro as dádivas. O que fui não volta mais. É o cheiro do frio, é o tempo, é o fim a curtos passos.
Choro, cuspi, respeito e contentamento. Uma semana depois, notei que durante uma semana só fazia olhar para ela. Um ano depois, notei que só havia importado uma semana, antes perdida.
É para que seja eu, e somente eu, que o mundo sofre assim. É por uma provação que eu mesmo cobrei.
Agora o frio queima, o tempo morre e eu... Eu espero poder ser enquanto tento achar limites pouco incômodos. Eu espero apenas ser enquanto desentendo, enquanto a mente falece, enquanto os olhos gangrenam.
Vivendo no limite entre o íntimo e o outro. Tentando ser dois, por necessidade e diversão. Sempre tentando, sempre distante, já que faz parte.
E aquela menina, Maria Louca, continua viva, recitando poemas e berrando aos surdos. É esse frio que controla o meio. Esse frio me faz natural, neural, neutro, coberto. Esse frio para o tempo e deixa a sala se arrumar.
Controla, controla, controla enquanto tenta se perder. Se alimenta de um mundo novo, criado de sonhos bobos, feitos para ajudar o tempo a correr.
Talvez o erro seja a melhor forma de me reencontrar com a humanidade. Quanto mais falho nisso, também acerto meus pés. Acho que estou indo bem.
Adoro os desafios da impossibilidade, até que me bate um sono e perco o saco, deixo o inevitável para depois.
Agora o frio queima, o frio prende, o tempo corre, o tempo morre e eu... Eu não.

sábado, 22 de maio de 2010

Biscoitos na calçada

Victor Rocha Nascimento

Passando em frente a uma loja de biscoitos nova que abrira na cidade, ela, que acabava de deixar a escola e já estava pronta para seguir seu caminho habitual para casa, resolveu sair dos trilhos. Comprou uma sacola cheia dos tipos mais variados de guloseimas e se sentou sobre a sarjeta. Comia displicentemente seus biscoitinhos enquanto observava os carros, as pessoas, e fantasiava ideias distantes. Por vezes cantarolava músicas da moda intercaladas com algumas quase esquecidas que sua mãe lhe ensinara a admirar. Já estava em outro mundo, era apenas uma observadora passiva, sem existir ou causar quaisquer danos ao meio. Foi neste momento que ele apareceu.
– Me vê um biscoito?
– Hem? – perguntou mesmo entendendo com perfeição a pergunta.
– Me vê um biscoito? – repetiu com boa vontade.
Meio sem jeito a menina concordou com a cabeça e estendeu o pacote. O jovem fez questão de escolher apenas um, nem muito grande nem muito pequeno, com bastante cuidado para não esbarrar os dedos em algo que não fosse comer.
A garota já se acomodava num processo de retorno ao seu mundo próprio quando o outro rapidamente sentou-se de maneira ainda mais relaxada ao seu lado.
Ela só teve tempo de virar os olhos para ele num misto de espanto e acusação quando o rapaz voltou a falar.
– É engraçado.
– O que?
– Como o mundo pode ser tão simples e tão intenso. As coisas... As coisas parecem ser tanto, enquanto podemos aceitar com fineza o fato de apenas serem.
Ela estava certa de que não era uma pessoa normal, e provavelmente, algum tipo de maluco com intenções ruins, mas... Sentia que o dia já nascera para ser diferente. Se havia algum momento de se entregar à incertezas, era agora. Ela decidiu entrar no jogo, mesmo sem saber direito como jogar.
– Talvez as pessoas se sintam mais confortáveis ao complicar. Talvez compliquem para dar sentido.
– Talvez compliquem para aceitar a si mesmos. Talvez para ficarem seguras de que... Existem para um motivo, uma lógica.
– O simples fato de existir não vale alguma coisa?
– Bem que poderia. Talvez devesse. Mas não costuma ser assim. Talvez apenas tenham medo. Todos se sentem sozinhos, mesmo que não estejam e mesmo que estejam por opção.
O assunto se estendia de uma forma tão interessante que a menina até mesmo esquecera de comer seus biscoitos. De repente, uma necessidade de afirmação lhe raptou e seu rosto se curvou velozmente para a sacola. Corada nas bochechas, foi tomada por uma insegurança que ministrava a mente, completamente embaralhada. Num impulso, lotou a boca de biscoitos para criar algum tempo de reflexão sobre o momento.
– Não imaginei que fosse me dar o biscoito. Quanto mais dar assunto. Um completo estranho como eu, se metendo no seu momento perfeito de solidão. Mas não pude deixar de tentar. Te ver aí, sozinha, envolvida por tanto e tão distante de tudo... Foi quase como me deparar comigo mesmo. – Seguia falando, encarando diretamente a garota, sem nenhuma censura e com um breve sorriso nos dois cantos da boca. Era como se tivesse encontrado um amigo intimo e após contar as horas para lhe dizer uma grande novidade.
– Tem toda a razão. – dizia ela ainda com migalhas de biscoito escapando pela boca – Eu não deveria lhe dar papo. Poderia muito bem ser um maníaco, um assassino. Poderia apenas querer abusar de mim.
– Ou poderia apenas estar tentando te cortejar de uma maneira desesperada, comum dos amantes românticos. Uma espécie de “choque libertário” do platônico.
– Ou talvez pudesse ser um grande maluco. Desses, com os quais esbarramos todo dia.
– Essa sim é uma hipótese brilhante! A questão é que, se eu realmente for, você também é. Não teria como não ser já que fica me dando trela, ainda que tenha todo um peso social lhe empurrando para o sentido contrário. Já dizia o poeta: “Um louco sempre atrai outro”.
– Poeta? Que poeta?
– O Zé.
– Que Zé? Esse eu não conheço.
– Prazer! Zé. O próprio.
– Mais que abusado! – disse em tom amigável.
A conversa durou toda a tarde e a sacola ia perdendo o peso. Os biscoitos eram eliminados como pipoca amanteigada em cenas tensas numa sala de cinema. Logo, restava apenas um.
– Estes biscoitos eram realmente muito bons. Sou muito grato. Foi o melhor lanche da minha vida.
– Isso me parece um exagero. De qualquer forma, também gostei muito. Por mais estranho que possa parecer, gostei tanto dos biscoitos quanto da conversar.
Por alguns instantes os dois ficaram perdidos, sem ter o que falar. Puderam ouvir suas próprias respirações. Não chegou a ser um desconforto. Apenas se olharam e sentiram o vento que agora batia com força. Foi ele quem quebrou o silencio.
– Sobrou um. Não vai comer?
– Você quer?
– Não, não. Não é isso. Apenas... Ah... Apenas queria que comesse.
– Podemos dividir.
– Tudo bem, então. Me parece justo.
Quando ela tentou encontrar o biscoito no fundo do saco, se desconcertou e acabou por deixá-lo cair.
Era fim de tarde, os carros se acumulavam. O frio da noite era cada vez maior e o vento empurrava restos do lixo da cidade por entre eles. O biscoito ficou ali, também. No chão sujo, entre eles.
– É, acho que acabou.
Estava tarde, sua mãe deveria estar preocupada. Ela havia se perdido no tempo e esquecera completamente da mãe, da casa, do caminho, do que costumava chamar de vida.
– Eu... Eu tenho que ir. – Disse ele com tom sereno enquanto ela estava aérea, se tomando de culpa por tamanha displicência que havia tido com o que cultivava como rotina.
Ele virou, sem grandes momentos, sem antes anotar um telefone, um email. Sem nem mesmo comentar por onde morava, de onde vinha. Ele foi embora, e só. Experiência flutuante. Algo único. Havia terminado num susto, assim como começou.
A menina levantou. Arrumou a roupa, bateu a poeira e seguiu o caminho, como se nada tivesse acontecido. Enquanto caminhava para casa, pensava sobre tudo que havia falado e sobre o menino misterioso que lhe fizera ter uma das tardes mais interessantes da sua vida. Pensava sobre como foi diferente e sobre a falta de sentido em tudo. “Afinal, o que faz o sentido ter, realmente, sentido?”
Andando calmamente para casa, duvidava sobre se realmente havia existido alguma companhia na calçada. Se existia algum tal de Zé.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

De cisma com o cabal

Victor Rocha Nascimento

Na corrente, entre os tapas preservados e a vitória corroída, fede um cheiro de gasto no que antes era vida.
Quando te chamam, te julgam, te amam, te escolhem, te acolhem, te previnem, te confiam, te recebem, te entendem, te escutam. Quando te dão direito e te devem. Quando te cobram e te dão deveres. Quando te presenteiam, quando te sorriem, quando te avaliam, quando te espiam, quando fazem vermelhas as tuas maçãs.
Quando te apontam, nada mais se pode ser. Espirre um 'grato'. Esparrame num grito. Nada mais se sente. Respire um 'repleto'. Recite um decreto. Nada melhor.
Arredou com fé. Escolheu no pó. Recolheu o pé. Na garganta um nó.
Quando tudo só passa e passa a ser só. Quando não há graça e o que foi felicidade vira dó. Quando o que um dia foi sonho beira o sono. Quando por falta se descontam os hormônios. Quando a ação é parada e não se aprende nada. Quando as juras secretas se tornam mentiras aradas. Resta criar.
Não existe o certo, o pronto, o cômodo, o fim, se não na morte (ainda assim, na leviana e medíocre suposição mortal). Só existe a escolha e o namoro da fortuna. Existe querer e tentar. Existe mudar, e só.
E para que se importar? Chute um motivo quem achar que deve, que pode, que tem. Chore suas perdas. Tente viver sem contar, sem temer, sem reclamar. Tente se perder por alguém.

sábado, 24 de abril de 2010

Bastarda Concórdia

Victor Rocha Nascimento

Eu caço, na esperança de um sonhador, um destino que corresponda ao meu cansaço, ao meu sangue seco de desilusão.
Ah, quem dera ter todos esses quilômetros para calar o pé. Quem dera caminhar só para sentir o desgaste, sentir o porre quente dos canos, sentir meus próprios sentimentos, colocar tudo no lugar.
Esperava, eu, competir com os carros, encarar o céu e o horizonte, mascar meus sonhos mais tolos e, quem sabe, ter você para conversar.
Nada melhor que uma tarde de imensidões para nos sentirmos tão pequenos a ponto de querer nos entregar. Nada pior do que descobrir, de repente, que nada pode se ajeitar.

Diz que foi por dar canseira, diz que foi a noite inteira
Diz que o sol espanta a vida, diz que foi a escolhida
pra deixar de me querer

Quem sabe fui a sobremesa, quem sabe foi a incerteza
Quem sabe foi tão querida, quem sabe estava tão perdida...
Que só queria se encontrar

No fim só resta a cereja
Fatia fina, o sangue à mesa
O grosso lodo de metal
temperado em sal
que a solidão fez brotar de mim.

Acho que veio pra ficar.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Papo de crianças (Um terceiro instante que ainda dura).

Victor Rocha Nascimento

Ainda éramos muito novos. Onze ou doze no máximo. Cada qual numa das pontas sociais. Ele no topo e eu afundado. Éramos completamente opostos e, ainda assim, tinhamos muito em comum. Tirando o fato de nos destacarmos de todo o resto, éramos extremamente lógicos e pensávamos além, por gosto. Nos divertíamos aprendendo sozinhos, observando como funcionavam as coisas, entendendo a complexidade das pessoas, os colegas. Éramos viciados em estudar o comportamento. Aprendendo, podíamos decidir como colocar em prática.

Não poderíamos ser vistos juntos, isso acabaria com o jogo. Mas, algumas vezes, quando ninguém estava olhando, tínhamos um tempo para colocar os assuntos em dia. Era muito mais raro do que possa parecer. Duas ou três vezes no ano. Quase impossível ninguém estar olhando. Era uma escola. Sociedade de controle entre amiguinhos. Muito tempo, muito estudo. Muito assunto. Tinha que ter algum espaço livre para conseguirmos nos falar.

Prova complicada. Os dois terminam. A turma para. Pátio limpo. Uma boa hora.
- E aí, como vão as coisas?
-Você? Falando comigo? Nossa, fazia tempo.
-Que isso... Antes passávamos o tempo todo juntos. Não tem nada de mais.
-Nada de mais porque estamos só nós dois...
-Verdade. Não teria como chegar perto de você de outra forma, mas já que não tem mais ninguém, estou livre para falar. [Chegavam a nos confundir, a nos chamar de irmãos]
-Interessante como são as coisas. Eu te admiro tanto quanto você a mim. Somos incrivelmente parecidos, temos as mesmas bases e, ainda assim, ninguém faz ideia. Mesmo que agora sejamos tão distantes, demos os primeiros passos juntos, em sincronia.
-A questão é usar a sua superioridade. Eu sei que você sabe como fazer, mas, por bobagens, não quer. É fácil se tornar um líder no meio deles, é muito fácil ser admirado, saber o que querem e fazer por onde. O que eu faço é tão simples que chega a ser natural. É tão natural que não pode nem ser chamado de crueldade.
-Acho que... Ainda que extremamente iguais, nossa distinção em escolhas e forma de encarar as pessoas nos fez de espelho. Não sei se posso dizer quem está certo ou errado. Nem se isso existe. Mas também não sei encarar de outra forma que não condenatória.
-Não é errado, apenas é. Entender o mundo é um dom e manipulá-lo é jus.
-Ok. Só não me sinto bem sabendo que isso é possível. Me aproveitando daqueles que não foram sorteados. Se houvesse uma meta, que fosse a de igualar saberes. Na verdade, se eu pudesse, eu...
Eu...
Ele.
As pessoas apareceram. Ele já não estava lá.
Eu, sozinho.
Mesmo parecendo muito, lutei para lembrar que não era um sonho. Ainda que quisesse que fosse.

domingo, 11 de abril de 2010

Breve pedido cândido

Victor Rocha Nascimento

De repente me peguei carente, sentindo o que se sente quando anda descrente de um novo amor.
Ahh, ela me diz que não sabe brincar disso, não senhor. Eu retruco querendo prova, pedindo esmola, berrando seco seu torpor.
Eu imploro que me dê bola e não vejo a hora de calar minha dor.
Já sou um tonto fazendo palhaçada pela sua atenção.
Vai, para de graça, me fala o que se sente quando se embaraça, quando se é escravo de um coração. Me explica o amor com alguma canção.
Já chega de joguinho, de abraço contido, de samba no escuro. Já estou ficando rubro de não te enxergar por de trás do muro. Me conta o segredo e me vende uma razão.
Essa menina viciou em me dar voltas, me joga na roda e me faz de pião. Me vidrou pelo nada que sou e pelo que julgo que sinto na sua aflição.
Agora eu espero perdido, sufocado, retido nessa multidão. Já não sei se te olho, se namoro, se decoro o caminho pra me agarrar num vazio de perfeição.
Insipiente, me viro em mim mesmo, mergulho em desejo, sorrio um beijo e durmo pra sonhar. Já não sei se sou eu quem inventa ou se é ela que sonha a minha ilusão de amar. Mas, quem sabe mais tarde, outra hora, fim de tarde, na marola, por acaso, por arte, nasce uma paixão. Faltava só coroar.
Se o tempo passa, a cadeira esquenta, se esvaziam as praças e a gente se aguenta, se o amor é só graça e o povo comenta, por que não tentar?


terça-feira, 6 de abril de 2010

A lei de gestão para devaneios

Victor Rocha Nascimento

Todos reclamavam da menina que, não importava hora nem clima, estava sempre cheia de sonhos e ideias, prontificada a colocá-las em prática.
Diziam que era doença, diziam que não era normal. Por medo, descriminavam a criança. Diziam de tudo para se sentirem bem e fechar os olhos ao potencial assustador da garota.
Pobrezinha, que por inveja perdera amigos e parentes. Perdera o estímulo que deveria receber por graça da sua beleza espiritual.
Sua existência era um favor, mas não se pode existir sozinha.
Por medo da solidão, tentava controlar suas ideias . Não tinha êxito. Pensar era mais forte que ela, e como era lindo assistir o milagre de sua imaginação. Poucas coisas podem ser comparadas. Era impossível entender.
Tão impossível era, que a menina se viu acuada, sem ter caminhos para seguir. Não adiantaria nada ser inteligente, criativa e não ter ninguém para admirar. Era sozinha. Era já mais uma frustrada, filha do egoísmo do homem. Decidiu que teria fim.
"Como pode uma cabeça dessa ser metida a ter tantas ideias? Como pode ser tão repleta e ter sede de pensar?"
Seus achismos, seus empirismos, suas fórmulas, seus desenhos, suas descobertas, suas criações. Sempre muito e mais do que seu entorno poderia esperar, quiçá entender. Mais do que poderiam aceitar.
Finalmente, do canto de um quarto escuro, ela teve sua ultima grande fantasia. Da mesma forma que se desbasta um vaso d'água ou um saco de batatas, estava na hora de jogar um pouco de imaginação fora. Espremer até ficar na medida vulgar. Até ser comum.
Ela correu para a cozinha, pegou uma faca e abriu as ideias.
Com sangue, cortou todas as dúvidas já perguntadas (ou as que para sempre foram escondidas) no ar. Só um fim de respostas pode ser belo como se espera de algum fim definitivo.
Ainda acordada, sonhava com um mundo melhor, onde o calor de um abraço apertado pudesse ser tão corriqueiro quanto a desilusão da índole humana. Sonhando, ela já não estava mais ali.
E quem sentiria falta?
É lei, é natural.
Nunca sabemos o que, por acidente e infeliz ironia, já se perdeu.
O mundo não faz ideia do quanto é cruel enquanto tenta, comodamente, ser normal.

terça-feira, 30 de março de 2010

Do Velho Amante Réprobo

Victor Rocha Nascimento

Entre goles do vinho mais barato, amassando na ponta dos dedos um retrato, reclamava aos céus um amor perdido, confundido com um ainda não encontrado.
Nas lamúrias de uma noite drogue, não importavam os que ouviam, os que se irritavam nem os que riam. Importava chorar a dor de um sentimento tão puro quanto vazio.
Faltava ela. Não no bar, nem em casa, mas no mundo. Restava o choro de cachorro bobo, velho, abandonado. As sobras de quem perdeu toda uma vida atrás de um amor inalcançável.
Entre histórias tristes das quais a vida condena, se escondiam contos que o palestrante mesmo inventa, amarrados nos buracos entre as palavras, para dar sentido e alguma alegria à uma vida de tanta desgraça.
Ora mais um rabo-de-saia, olhos lustrados prum coração em migalhas. A antiga empolgação noivou com o medo. Olhos fechados, língua presa na cachaça. Da esperança nasce desespero.
Implorava outra dose, mas já vinha o sol e o bar fecha as seis. Foi botado pra fora mais uma vez...
Chorou o amor de testa no concreto. Sujou suas roupas de boteco. Arranhou a pele. Perdera todo o dinheiro do mês.
Num sonho bobo de criança, mergulhado em segurança, esbarrava com sua ninfa dançando por nuvens de anis. Agora era o seu reinado, o seu mundo encantado e ela era coroada imperatriz.
Acordou quase mendigo. Triste, desiludido. Mas, de sobra, alguma esmola. Catou as moedas, abraçou sua dores e foi embora.
No caminho ainda tonto, tão fedido e tão bronco, se atentava nas mulheres transeuntes pra injetar sua perfeição. Chegando em casa se arrumava, se limpava, se alegrava e assoviava com charme uma nova canção.
Logo nascia um novo amor, um novo conto e esperança. É de sonhos que se vive e das paixões nunca se cansa. Para não morrer na desgraça, ele sempre se renovava e enganava toda sua experiência, comodamente branda.
Sempre é hora de renovar. E como se não fosse tudo um ciclo, o boteco sempre vai estar lá, com um copo meio vazio e uma cadeira reservada, esperando ele voltar.

sábado, 27 de março de 2010

Que o espírito toma mais que as mãos

Victor Rocha Nascimento

Essa coisa que cheira, que fede, que apentelha, que se mete... Essa coisa maluca, insistente, retardada e carente, que ninguém fala e a gente sente. Essa coisa gostosa e crente...

Quem disse que a arte não conta, não canta, não ronca, não ata, não come, não mata, não salva, não ri?
Quem disse que a arte não mente e que não pretende a arte e que não entende. Quem disse que não fala da gente? Quem foi que mentiu a arte da minoria? Quem ainda se atreve e abusa domar?

E como viver sem ela, que transborda indulto, que inflige em banzar. Como sarar do teu sorriso, da tua luz. Como não agonizar nela, como não viver nela, e ser dela e ser ela. Como abandonar?

Ah, se ela consome, se explica, se corrompe, basta se render. Ah, se ela existe em tanto e em tudo. Se ela me deixa tonto e mudo. Se ela reflete em sentidos e significados. É ela que eu vejo, respiro e escuto. É dela que vivo e que estou farto.

Que é tudo e absolutamente abstrato. Que é belo e que é aos olhos mutantes. Que é repleto e marcante. Que não é nada. É a fome dos retalhos. É a palavra do sentimento. É o que marca o inexplicável.

Não seria tanto se fosse quimera, não seria tanto se fosse mulher. Não seria tanto se não fosse besteira, rotina. Não seria tanto se não fosse e se só fosse o que dizem que é. Não é nem o que eu digo e tento dizer. É só o que eu sinto e o que cada um entende para si.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Faro deslocado

Victor Rocha Nascimento

Imagine um vento o suficiente forte para espremer a sua alma contra o canto esquerdo do corpo.
Imagine um vento tal que pudesse confundir o verde e o branco dos teus olhos. Um vento que limpasse a mente e o ódio.
Imagine um vento quente e confortável, que a pele não sente, mas inveja. Que te empurra feito pluma por sonhos vizinhos.
Imagine que esse vento é soprado de uma boca macia, molhada, direto pra sua orelha. Imagine que percorre o pescoço.
Um vento puro como jamais poderemos ser. Um vento de embaralhar ideias, de retalhar motivos, de decretar o eterno.
Ele vem do nada e faz o certo chorar passado, faz o errado buscar sentido, cria novidade ao desinformado.
Imagine e entenda. Sinta e entenda. Cheire e entenda. Quem já não degustou do sopro e quem não vai um dia? Quem não espera ansioso pela próxima vez?
Quem não reconhece quando o bafo, tão leve, percorre o corpo, dá voltas no centro do peito e se esconde no interior do estômago comprimido? Não há dúvidas.
Só há dúvidas....
Só há o vento... O sopro... Tão breve, tão intenso. Só há o novo ainda que inconveniente de tão comum.
Lava a fumaça, lava a alma, leva a ideia. Traz desejo.
Vento do suspiro, do cansaço, do trago amargo. Vento raro, raso, marcado em laços. Sopro da vida confundido em pecados.
Imagine um vento que invade as narinas e que entorpece os pulmões de uma farteza imensurável. Imagine o quanto sacia.
Imagine esse vento soprando em você. Imagine o calor, a falta de contexto. Imagine o momento e o segredo.
Sinta. Respire. Cheire. Expire esse vento. Transpire.
Qual a cor? Qual o som? Qual a textura? Qual o gosto? Qual o cheiro?

sexta-feira, 5 de março de 2010

Un destino errante, pero grandisimo!

Victor Rocha Nascimento

Sé que cuanto más tiempo pasa me siento más incapaz y trato de ahogar mis errores y pecados, pero sólo empeoro las cosas y pierdo el curso ya establecido.
Estoy seguro de que no existe la perfección y la búsqueda de algo más grande es siempre sólo una búsqueda, pero, si no puedo vivir de otra manera, prefiero no sufrir el dolor de intentarlo.
¿Qué voy descubrir en mí y para mi si mis propios métodos pueden agredir mis ideas? ¿Qué voy a buscar en ella si no sé ni por dónde empezar?
Miro a los ojos a los fantasmas. Puedo marcar los delirios de la utopía en la piel.
Si no es la búsqueda y siempre en busca de... Si es así y si hay alguna respuesta... ¿Cuál es la gracia? ¿Cuál es el reto? ¿Cuál es el propósito?
El consuelo es un abrazo de oso, la calidez de una sonrisa imperfecta, un café poco caliente y sin azúcar, los ojos oscuros en la aventura de una noche eterna.
Me pierdo en una caricia, un gesto, un modo de espera. Soy un cazador del futuro, de la humanidad, aunque ninguno de ellos exista.
Soy el hijo de la esperanza muerta, de la vida de aquellos que ya no están. Soy una máquina de hielo y acero. Soy todo el sentimento del hombre.
No me importa si me humillan, si soy una broma. No me importa nada que no vaya a durar. Soy yo y todo el mundo adaptado en mi verde. Soy otro vigilante, otro loco para atreverse a pensar y a querer.
Soy solamente un tonto y para aquellos que tratan de entender sin antes tratar de sentir, es todo lo que puedo llegar a ser.

saludos y gracias a la señorita Florentona

domingo, 31 de janeiro de 2010

Entre dois tempos

Victor Rocha Nascimento

Aguarda recatado o guri que ferve em brasa as ideias de outrora, da sua divina cachola morta. Espera ansioso que se resolvam os fatos e que se compliquem as respostas. Quer, na doçura de uma criança, um mundo novo. Quer o infinito do lado de fora.
Que as soluções dos seus mais avassalantes problemas lhe torturem antes de que venha o tempo do afago. Convive na esperança de que nada lhe falte e tudo lhe instigue. Grita rouco aos ventos que não seja fácil, mas que em um instante possa simplesmente 'ser', e que lhe complete. Que a hora, por mais que tarde e que se perca o número de alvoradas, seja certa. Ele chama o destino para a peleja aberta.
Essa carência que contamina e esvazia não nasce da solidão, nasce do ócio. Ele se mantém ocupado, entretido, e logo as medidas se encolhem e as finalidades lhe regalam. O que é a vida se não as metas? O que é a vida se não tão somente fluir em sí, sem pressa, sem unhas roídas?
Cuidado que estas suas mãos suadas podem assustar!
Olha em volta. Esta chuva de conselhos, esse mar de preocupações. Olha pros que te querem e não te abandonam num primeiro tapa áspero. Estes são os seus, e é com eles que os problemas passam mais leves. É dos problemas deles que tem que se ocupar.
Os dias são brancos até lá. Apenas páginas, como todos outros. Se tem uma coisa que esse moleque gosta é de rabiscar!
A espera pura é o assassinato dos instantes, dos momentos, e quanto tempo mais for esperar. É a morte em escalas.
As narinas, entupidas pelo perfume viciante, que engana a mente nos momentos mais indecorosos, não podem simplesmente deixar de respirar. Não se afoga de cheiro, ainda que quase. Não se aprende com os primeiros erros, ainda que fosse melhor assim.
Vida pouca em que se descobre muito mais no virar das páginas que no sumo dos capítulos. Vida louca.
Melhor aproveitar como se deve e cavar suas respostas de qualquer sujeira. Não existe um momento vazio entre dois tempos... É exatamente neste meio que se desvendam os segredos.
É, guri... Se rasga em dois e tenta não se assustar com o que vaza da fresta. Já passou da hora de se reencontrar.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

E nasce mais uma conjuntura...

Victor Rocha Nascimento

Já num susto de olhar-relance, num primeiro cheiro, primeiro toque, escorre a vespa por trás da orelha. Quente , cruza de leve o cangote. Espalha calor por uma rota cuidadosamente pervertida. Faz a noite querer acontecer. Faz querer nascer rotina e, ainda assim, ser especial.
Ô moleque besta, que respira instantes pra esquecer que a vida passa em momentos. Pobre criança tola, que se prende nos detalhes e deixa de prestigiar a obra lustrada. Vê, no barro, as marcas de mão. Procura assunto, vive do bastidor reprimido. Ah, esse seu vício pelo toque, pelo gosto, pelo perfume. Ah, esse seu lance com olhos, com o jeito do cabelo, com as rugas dos sorrisos.
Mania pior é a de escrever sobre tudo e vomitar segredos para satisfazer a mente gorda. Tem coisas que não se fala, nem se escreve. Tem coisa que não se deve. Tem desejo que vem pra não ser.
Lapidei mais uma história no peito. Esse terreno sujo de vermelho voltou a querer se aventurar, de metido que é. Até parece que não sabe: anda ficando desvalorizado por falta de interesse... Ainda bem caro pela inflação 'desilusão', mas por longa experiência, sei que não dura muito.
Se retorce em cuidados, garoto bobo! Pelo menos por agora, é a ultima chance que te dou. Resta uma oportunidade gasta para sucumbir à lógica pageana. Nada de muito nobre, mas é uma saída que me parece válida.
De resto, chora babaca. Quem te mandou insistir nessa teoria sem lógica, fundada em fé e esperança, se não sua própria ignorância possivelmente velada pelo masoquismo? Seria gosto pela aventura, pelo contraste ou pelo sofrimento? Seria desgosto? Melhor mesmo seria não ser. Descartada a possibilidade, descarto também analisar hipóteses e deixo que a vida vá.
Ah, se a carência e o romance não nos engolfasse em vertigem...
Não apenas seria tudo mais simples com também faria mais sentido.
Vai, morena, vive tua vida e se venda das minhas doenças, das minhas fraquezas, do meu passado de escolhas distintas. Vão, minhas garotas, que se é para não dar certo pra alguém, que seja presse besta que já tá acostumado a sofrer.
Composez votre vie