sábado, 24 de abril de 2010

Bastarda Concórdia

Victor Rocha Nascimento

Eu caço, na esperança de um sonhador, um destino que corresponda ao meu cansaço, ao meu sangue seco de desilusão.
Ah, quem dera ter todos esses quilômetros para calar o pé. Quem dera caminhar só para sentir o desgaste, sentir o porre quente dos canos, sentir meus próprios sentimentos, colocar tudo no lugar.
Esperava, eu, competir com os carros, encarar o céu e o horizonte, mascar meus sonhos mais tolos e, quem sabe, ter você para conversar.
Nada melhor que uma tarde de imensidões para nos sentirmos tão pequenos a ponto de querer nos entregar. Nada pior do que descobrir, de repente, que nada pode se ajeitar.

Diz que foi por dar canseira, diz que foi a noite inteira
Diz que o sol espanta a vida, diz que foi a escolhida
pra deixar de me querer

Quem sabe fui a sobremesa, quem sabe foi a incerteza
Quem sabe foi tão querida, quem sabe estava tão perdida...
Que só queria se encontrar

No fim só resta a cereja
Fatia fina, o sangue à mesa
O grosso lodo de metal
temperado em sal
que a solidão fez brotar de mim.

Acho que veio pra ficar.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Papo de crianças (Um terceiro instante que ainda dura).

Victor Rocha Nascimento

Ainda éramos muito novos. Onze ou doze no máximo. Cada qual numa das pontas sociais. Ele no topo e eu afundado. Éramos completamente opostos e, ainda assim, tinhamos muito em comum. Tirando o fato de nos destacarmos de todo o resto, éramos extremamente lógicos e pensávamos além, por gosto. Nos divertíamos aprendendo sozinhos, observando como funcionavam as coisas, entendendo a complexidade das pessoas, os colegas. Éramos viciados em estudar o comportamento. Aprendendo, podíamos decidir como colocar em prática.

Não poderíamos ser vistos juntos, isso acabaria com o jogo. Mas, algumas vezes, quando ninguém estava olhando, tínhamos um tempo para colocar os assuntos em dia. Era muito mais raro do que possa parecer. Duas ou três vezes no ano. Quase impossível ninguém estar olhando. Era uma escola. Sociedade de controle entre amiguinhos. Muito tempo, muito estudo. Muito assunto. Tinha que ter algum espaço livre para conseguirmos nos falar.

Prova complicada. Os dois terminam. A turma para. Pátio limpo. Uma boa hora.
- E aí, como vão as coisas?
-Você? Falando comigo? Nossa, fazia tempo.
-Que isso... Antes passávamos o tempo todo juntos. Não tem nada de mais.
-Nada de mais porque estamos só nós dois...
-Verdade. Não teria como chegar perto de você de outra forma, mas já que não tem mais ninguém, estou livre para falar. [Chegavam a nos confundir, a nos chamar de irmãos]
-Interessante como são as coisas. Eu te admiro tanto quanto você a mim. Somos incrivelmente parecidos, temos as mesmas bases e, ainda assim, ninguém faz ideia. Mesmo que agora sejamos tão distantes, demos os primeiros passos juntos, em sincronia.
-A questão é usar a sua superioridade. Eu sei que você sabe como fazer, mas, por bobagens, não quer. É fácil se tornar um líder no meio deles, é muito fácil ser admirado, saber o que querem e fazer por onde. O que eu faço é tão simples que chega a ser natural. É tão natural que não pode nem ser chamado de crueldade.
-Acho que... Ainda que extremamente iguais, nossa distinção em escolhas e forma de encarar as pessoas nos fez de espelho. Não sei se posso dizer quem está certo ou errado. Nem se isso existe. Mas também não sei encarar de outra forma que não condenatória.
-Não é errado, apenas é. Entender o mundo é um dom e manipulá-lo é jus.
-Ok. Só não me sinto bem sabendo que isso é possível. Me aproveitando daqueles que não foram sorteados. Se houvesse uma meta, que fosse a de igualar saberes. Na verdade, se eu pudesse, eu...
Eu...
Ele.
As pessoas apareceram. Ele já não estava lá.
Eu, sozinho.
Mesmo parecendo muito, lutei para lembrar que não era um sonho. Ainda que quisesse que fosse.

domingo, 11 de abril de 2010

Breve pedido cândido

Victor Rocha Nascimento

De repente me peguei carente, sentindo o que se sente quando anda descrente de um novo amor.
Ahh, ela me diz que não sabe brincar disso, não senhor. Eu retruco querendo prova, pedindo esmola, berrando seco seu torpor.
Eu imploro que me dê bola e não vejo a hora de calar minha dor.
Já sou um tonto fazendo palhaçada pela sua atenção.
Vai, para de graça, me fala o que se sente quando se embaraça, quando se é escravo de um coração. Me explica o amor com alguma canção.
Já chega de joguinho, de abraço contido, de samba no escuro. Já estou ficando rubro de não te enxergar por de trás do muro. Me conta o segredo e me vende uma razão.
Essa menina viciou em me dar voltas, me joga na roda e me faz de pião. Me vidrou pelo nada que sou e pelo que julgo que sinto na sua aflição.
Agora eu espero perdido, sufocado, retido nessa multidão. Já não sei se te olho, se namoro, se decoro o caminho pra me agarrar num vazio de perfeição.
Insipiente, me viro em mim mesmo, mergulho em desejo, sorrio um beijo e durmo pra sonhar. Já não sei se sou eu quem inventa ou se é ela que sonha a minha ilusão de amar. Mas, quem sabe mais tarde, outra hora, fim de tarde, na marola, por acaso, por arte, nasce uma paixão. Faltava só coroar.
Se o tempo passa, a cadeira esquenta, se esvaziam as praças e a gente se aguenta, se o amor é só graça e o povo comenta, por que não tentar?


terça-feira, 6 de abril de 2010

A lei de gestão para devaneios

Victor Rocha Nascimento

Todos reclamavam da menina que, não importava hora nem clima, estava sempre cheia de sonhos e ideias, prontificada a colocá-las em prática.
Diziam que era doença, diziam que não era normal. Por medo, descriminavam a criança. Diziam de tudo para se sentirem bem e fechar os olhos ao potencial assustador da garota.
Pobrezinha, que por inveja perdera amigos e parentes. Perdera o estímulo que deveria receber por graça da sua beleza espiritual.
Sua existência era um favor, mas não se pode existir sozinha.
Por medo da solidão, tentava controlar suas ideias . Não tinha êxito. Pensar era mais forte que ela, e como era lindo assistir o milagre de sua imaginação. Poucas coisas podem ser comparadas. Era impossível entender.
Tão impossível era, que a menina se viu acuada, sem ter caminhos para seguir. Não adiantaria nada ser inteligente, criativa e não ter ninguém para admirar. Era sozinha. Era já mais uma frustrada, filha do egoísmo do homem. Decidiu que teria fim.
"Como pode uma cabeça dessa ser metida a ter tantas ideias? Como pode ser tão repleta e ter sede de pensar?"
Seus achismos, seus empirismos, suas fórmulas, seus desenhos, suas descobertas, suas criações. Sempre muito e mais do que seu entorno poderia esperar, quiçá entender. Mais do que poderiam aceitar.
Finalmente, do canto de um quarto escuro, ela teve sua ultima grande fantasia. Da mesma forma que se desbasta um vaso d'água ou um saco de batatas, estava na hora de jogar um pouco de imaginação fora. Espremer até ficar na medida vulgar. Até ser comum.
Ela correu para a cozinha, pegou uma faca e abriu as ideias.
Com sangue, cortou todas as dúvidas já perguntadas (ou as que para sempre foram escondidas) no ar. Só um fim de respostas pode ser belo como se espera de algum fim definitivo.
Ainda acordada, sonhava com um mundo melhor, onde o calor de um abraço apertado pudesse ser tão corriqueiro quanto a desilusão da índole humana. Sonhando, ela já não estava mais ali.
E quem sentiria falta?
É lei, é natural.
Nunca sabemos o que, por acidente e infeliz ironia, já se perdeu.
O mundo não faz ideia do quanto é cruel enquanto tenta, comodamente, ser normal.