sábado, 22 de maio de 2010

Biscoitos na calçada

Victor Rocha Nascimento

Passando em frente a uma loja de biscoitos nova que abrira na cidade, ela, que acabava de deixar a escola e já estava pronta para seguir seu caminho habitual para casa, resolveu sair dos trilhos. Comprou uma sacola cheia dos tipos mais variados de guloseimas e se sentou sobre a sarjeta. Comia displicentemente seus biscoitinhos enquanto observava os carros, as pessoas, e fantasiava ideias distantes. Por vezes cantarolava músicas da moda intercaladas com algumas quase esquecidas que sua mãe lhe ensinara a admirar. Já estava em outro mundo, era apenas uma observadora passiva, sem existir ou causar quaisquer danos ao meio. Foi neste momento que ele apareceu.
– Me vê um biscoito?
– Hem? – perguntou mesmo entendendo com perfeição a pergunta.
– Me vê um biscoito? – repetiu com boa vontade.
Meio sem jeito a menina concordou com a cabeça e estendeu o pacote. O jovem fez questão de escolher apenas um, nem muito grande nem muito pequeno, com bastante cuidado para não esbarrar os dedos em algo que não fosse comer.
A garota já se acomodava num processo de retorno ao seu mundo próprio quando o outro rapidamente sentou-se de maneira ainda mais relaxada ao seu lado.
Ela só teve tempo de virar os olhos para ele num misto de espanto e acusação quando o rapaz voltou a falar.
– É engraçado.
– O que?
– Como o mundo pode ser tão simples e tão intenso. As coisas... As coisas parecem ser tanto, enquanto podemos aceitar com fineza o fato de apenas serem.
Ela estava certa de que não era uma pessoa normal, e provavelmente, algum tipo de maluco com intenções ruins, mas... Sentia que o dia já nascera para ser diferente. Se havia algum momento de se entregar à incertezas, era agora. Ela decidiu entrar no jogo, mesmo sem saber direito como jogar.
– Talvez as pessoas se sintam mais confortáveis ao complicar. Talvez compliquem para dar sentido.
– Talvez compliquem para aceitar a si mesmos. Talvez para ficarem seguras de que... Existem para um motivo, uma lógica.
– O simples fato de existir não vale alguma coisa?
– Bem que poderia. Talvez devesse. Mas não costuma ser assim. Talvez apenas tenham medo. Todos se sentem sozinhos, mesmo que não estejam e mesmo que estejam por opção.
O assunto se estendia de uma forma tão interessante que a menina até mesmo esquecera de comer seus biscoitos. De repente, uma necessidade de afirmação lhe raptou e seu rosto se curvou velozmente para a sacola. Corada nas bochechas, foi tomada por uma insegurança que ministrava a mente, completamente embaralhada. Num impulso, lotou a boca de biscoitos para criar algum tempo de reflexão sobre o momento.
– Não imaginei que fosse me dar o biscoito. Quanto mais dar assunto. Um completo estranho como eu, se metendo no seu momento perfeito de solidão. Mas não pude deixar de tentar. Te ver aí, sozinha, envolvida por tanto e tão distante de tudo... Foi quase como me deparar comigo mesmo. – Seguia falando, encarando diretamente a garota, sem nenhuma censura e com um breve sorriso nos dois cantos da boca. Era como se tivesse encontrado um amigo intimo e após contar as horas para lhe dizer uma grande novidade.
– Tem toda a razão. – dizia ela ainda com migalhas de biscoito escapando pela boca – Eu não deveria lhe dar papo. Poderia muito bem ser um maníaco, um assassino. Poderia apenas querer abusar de mim.
– Ou poderia apenas estar tentando te cortejar de uma maneira desesperada, comum dos amantes românticos. Uma espécie de “choque libertário” do platônico.
– Ou talvez pudesse ser um grande maluco. Desses, com os quais esbarramos todo dia.
– Essa sim é uma hipótese brilhante! A questão é que, se eu realmente for, você também é. Não teria como não ser já que fica me dando trela, ainda que tenha todo um peso social lhe empurrando para o sentido contrário. Já dizia o poeta: “Um louco sempre atrai outro”.
– Poeta? Que poeta?
– O Zé.
– Que Zé? Esse eu não conheço.
– Prazer! Zé. O próprio.
– Mais que abusado! – disse em tom amigável.
A conversa durou toda a tarde e a sacola ia perdendo o peso. Os biscoitos eram eliminados como pipoca amanteigada em cenas tensas numa sala de cinema. Logo, restava apenas um.
– Estes biscoitos eram realmente muito bons. Sou muito grato. Foi o melhor lanche da minha vida.
– Isso me parece um exagero. De qualquer forma, também gostei muito. Por mais estranho que possa parecer, gostei tanto dos biscoitos quanto da conversar.
Por alguns instantes os dois ficaram perdidos, sem ter o que falar. Puderam ouvir suas próprias respirações. Não chegou a ser um desconforto. Apenas se olharam e sentiram o vento que agora batia com força. Foi ele quem quebrou o silencio.
– Sobrou um. Não vai comer?
– Você quer?
– Não, não. Não é isso. Apenas... Ah... Apenas queria que comesse.
– Podemos dividir.
– Tudo bem, então. Me parece justo.
Quando ela tentou encontrar o biscoito no fundo do saco, se desconcertou e acabou por deixá-lo cair.
Era fim de tarde, os carros se acumulavam. O frio da noite era cada vez maior e o vento empurrava restos do lixo da cidade por entre eles. O biscoito ficou ali, também. No chão sujo, entre eles.
– É, acho que acabou.
Estava tarde, sua mãe deveria estar preocupada. Ela havia se perdido no tempo e esquecera completamente da mãe, da casa, do caminho, do que costumava chamar de vida.
– Eu... Eu tenho que ir. – Disse ele com tom sereno enquanto ela estava aérea, se tomando de culpa por tamanha displicência que havia tido com o que cultivava como rotina.
Ele virou, sem grandes momentos, sem antes anotar um telefone, um email. Sem nem mesmo comentar por onde morava, de onde vinha. Ele foi embora, e só. Experiência flutuante. Algo único. Havia terminado num susto, assim como começou.
A menina levantou. Arrumou a roupa, bateu a poeira e seguiu o caminho, como se nada tivesse acontecido. Enquanto caminhava para casa, pensava sobre tudo que havia falado e sobre o menino misterioso que lhe fizera ter uma das tardes mais interessantes da sua vida. Pensava sobre como foi diferente e sobre a falta de sentido em tudo. “Afinal, o que faz o sentido ter, realmente, sentido?”
Andando calmamente para casa, duvidava sobre se realmente havia existido alguma companhia na calçada. Se existia algum tal de Zé.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

De cisma com o cabal

Victor Rocha Nascimento

Na corrente, entre os tapas preservados e a vitória corroída, fede um cheiro de gasto no que antes era vida.
Quando te chamam, te julgam, te amam, te escolhem, te acolhem, te previnem, te confiam, te recebem, te entendem, te escutam. Quando te dão direito e te devem. Quando te cobram e te dão deveres. Quando te presenteiam, quando te sorriem, quando te avaliam, quando te espiam, quando fazem vermelhas as tuas maçãs.
Quando te apontam, nada mais se pode ser. Espirre um 'grato'. Esparrame num grito. Nada mais se sente. Respire um 'repleto'. Recite um decreto. Nada melhor.
Arredou com fé. Escolheu no pó. Recolheu o pé. Na garganta um nó.
Quando tudo só passa e passa a ser só. Quando não há graça e o que foi felicidade vira dó. Quando o que um dia foi sonho beira o sono. Quando por falta se descontam os hormônios. Quando a ação é parada e não se aprende nada. Quando as juras secretas se tornam mentiras aradas. Resta criar.
Não existe o certo, o pronto, o cômodo, o fim, se não na morte (ainda assim, na leviana e medíocre suposição mortal). Só existe a escolha e o namoro da fortuna. Existe querer e tentar. Existe mudar, e só.
E para que se importar? Chute um motivo quem achar que deve, que pode, que tem. Chore suas perdas. Tente viver sem contar, sem temer, sem reclamar. Tente se perder por alguém.