sábado, 23 de junho de 2012

Leitura sob vela

Victor Rocha Nascimento

Já era tarde quando ele começou a esticar os tornozelos lentamente até o salão principal. Filho de homem importante e frio, o garoto buscava diversão na quebra de regras. Momento propício? A madrugada.  Uma aventura? Invadir a biblioteca particular do pai. Um verdadeiro recanto de relíquias, com edições raríssimas de escritores de cada tempo classificado. Já não parecia ser possível identificar valor para o conjunto de obras ali guardadas... O acervo era de colocar inveja em algumas seções da irmã de Alexandria.
O menino, embora muito novo, beirando de perto os oito anos, era um exímio leitor. Seu pai o colocava em regime de estudo aplicado com os melhores mestres da Europa e costumava exibir seus dotes invocando-o para declamar trechos complicados de livros pesados durante jantares importantes em sua mansão. Esta prática ele cumpria com afinco, apesar de odiar no interior da alma. Já as leituras proibidas da madrugada eram doces, leves... Com gosto de subversão.
O menino deslizou a porta com cautela e entrou na biblioteca portando uma vela de calibre baixo. Caminhou por boa parte da sua extensão e decidiu, por impulso, parar. Virou-se para a esquerda e sentiu como um convite a sacar uma das obras fixadas na estante. Ele teve alguma dificuldade, mas alcançou pela ponta dos dedos um bolo de páginas amareladas envoltas por uma capa dura e suja, amarrada, que parecia feita de algum couro mal escolhido. O garoto arrastou o livro até uma das mesas do ambiente, posicionou seu castiçal e se preparou para a leitura.
 Na primeira página, uma marca indicava a universidade de Miskatonic em uma reprodução falha, de tinta fraca. A criança iniciava sua prática com alguma empolgação curiosamente mórbida. Dedilhou cuidadosamente as primeiras folhas e sentiu a ponta dos dedos levemente quentes. Nunca havia sentido emoção parecida em suas aventuras noturnas, mas era boa. Pelo menos no início.
Ele juntava as palavras reconhecendo pouco do que lia. Dentro da sua cabeça os escritos reverberavam como mantras. Mesmo com sua cultura elevada para a idade, o contexto daquela obra era de outro nível. Enquanto forçava a compreensão, zumbidos como de insetos soavam pelo seu corpo com frequência baixa, mas incômoda. Uma leve tontura o fez piscar pesado. Levado por uma vontade avassaladora, o jovem sofria com um surto tentador de ignorar a estranha sensação para prosseguir com a leitura.
As palavras de cunho inclusive obsceno o assustavam, mas pareciam alimentar algo que sua pouca idade ainda não revelara. Aos poucos ele se deparava com termos estranhos ao seu idioma. Al-Hazred, Yog-Sothoth... Deuses? Caminhos? Ele estava diante de uma cultura fantástica que parecia consumir sua sanidade.
Após mais de uma hora em fixação, sensações de náusea e melancolia tomavam a criança.  Sentiu o jantar subir pelo esôfago em sobressalto e imediatamente levou os dedos a boca. Um líquido estranho respingou, mas a visão turva não permitiu perceber a coloração negra manchando a leitura. Sua energia parecia drenada, mas ele mantinha um esforço sobre-humano para seguir lendo. Por vezes, assustava-se com sussurros distantes de vozes rasgadas e palavras desconhecidas. Ele sabia que algo o dominava, o comprimia por todos os lados. Tremia ao pensar escutar o pai clamando pelos ancestrais. Curvava-se sobre a mesa ao sentir que seu falecido avô sussurrava gemidos de uma só vez em suas duas orelhas. Enquanto lia, não era mais sua própria mente que narrava a informação disposta no amarelo das folhas.
Agora, já estava apavorado. Entendera em um susto que havia sido preso num vício estranho. Sua pouca maturidade e mente frágil o fizeram presa fácil do conteúdo inebriante do livro. O que ele antes não compreendia, já parecia fazer parte de sua essência.
De olhos esbugalhados, mas com vista turva e sem conseguir emitir qualquer som, o corpo da criança formigava, gelava e parecia flutuar. No momento em que seu desespero gritava por ajuda, não havia reação do corpo. O ar acabou. Notava sua própria pele derreter. Estava certo de já poder tocar a morte e lamentava não ter forças para alertar a ninguém sobre sua frágil consciência.
Em um segundo instante, dos quais lhe cortavam agora feito eternidade, notou que seu corpo seguia intacto, fixo feito pedra. Algo estava extremamente errado, mas nada que pudesse ser físico. Enquanto ouvia sussurros com informações doloridas e segredos ardentes sobre vida, morte e universo, aparentava poder presenciar duas realidades com uma só mirada. Ele sabia que estava acompanhado de algo tão forte que, antes, jamais poderia supor existir. Eis que numa brasa de sangue aos olhos, braços gelados lhe cobriram o corpo e sua consciência cerrou.

O quente da manhã já tocava a grama do pátio quando o pai saiu à procura do filho. Irritado, queria certificar-se de que a criança estava em ordem para iniciar o dia. Quando a descobriu, sentada perene à porta da mansão, por pouco não notou que se tratava de outro no que já era apenas a carcaça do jovem. O aspecto seco, enrugado e pálido da pele, além do obscuro e quebradiço no rosto, pareceu menos urgente do que a necessidade da prontidão pela rotina. O tempo passava e, doença que fosse, teria outra hora para ser tratada.
Líder, austero, o homem apenas ordenou que o filho tomasse o rumo programado no padrão dos meses. Foi então que, por instantes, seus olhos cruzaram e um amarelo felino ardeu do garoto para o pai. Não durou mais que um instante, mas custou uma intensidade atemporal. Quietos, como de costume, ambos entraram como soldados.
Ao selar da porta, algo se deu. Um silêncio sepulcral calou até os animais. Segundos depois, estalos trincados cortaram o ar. Um jogo de luzes vermelhas esticou-se pelas janelas do casarão. Os empregados, aos berros, tentavam anunciar ao mundo o que de terrível tomava aquela mansão. Mesmo de longe se podia ouvir o roer de unhas no portão de madeira cara. Um som extremamente grave ecoou no saguão enquanto uma chama fétida lambia as estruturas da casa estampando terríveis silhuetas negras. Os robustos jardineiros e valets não tiveram coragem de se aproximar. Estava claro que não poderiam fazer nada. Aos poucos a grama secava, as paredes brancas se convertiam em carvão. Com a derrocada dos empregados sobreviventes, todos que tinham algum juízo deixaram para trás aquela terra amaldiçoada.

Sabe-se que uma parte da casa permanece intacta. Na biblioteca, alguns livros raríssimos mantiveram-se, milagrosamente. Mesmo assim, não houve valente que se dispusesse a explorar as riquezas deixadas pela mansão. Dizem que, entre eles, esconde-se uma edição do livro dos mortos esperando para ser descoberta.