quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Veleidade

Victor Rocha Nascimento

Que menina é essa, sem cheiro e sem cor?
Que é essa força que me rasga num olhar de vento e me leva pro mar numa cantoria limpa e sem tom? E essa delícia sem saliva nem sexo. Essa mulher de carinhos frios, tato morto.
Quem é ela, que me dobra e que ainda sem me conhecer, corrompe onírica?
Com que sagacidade dribla meu tempo e se veste em outras peles só pra me atazanar?
Que futuro é esse que te serve de refúgio e que tanto espera para se fazer presente? Porque não pular as etapas, que não servem pra nada, e se entregar num gesto gasto para mim?
Que perfeição é essa que só existe num caminho de meios, e se preserva escondida na ponta mais fina?
De mente dispersa escuto teu choro, teu grito, te velo e te namoro sem nem mesmo saber sua graça ou de onde cê vem.
Queria eu poder ver, te beber, te respirar, te consumir. Queria ter esse poder, espiar pelas frestas do tempo, das certezas e dos sonhos amantes, e, por instante, ter tranquilidade de que um dia vai existir.
Quem é essa que se anuncia a todo instante e me injeta esperanças à deriva de uma passarela que insiste em crescer?
Ô mocinha esperta, sem boca, nem cabelo e nem brilho. Ô mulher danada que me excita de suspense e se demora pra essa hora não marcada, pra esse ponteiro já quebrado que se fez enferrujado de tanto te esperar.

domingo, 27 de dezembro de 2009

Bote de risco

Victor Rocha Nascimento

Tô de olho, espiando pra te ver passar
Tô de olho no meu canto, com medo de me machucar
Melhor tomar cuidado e estar bem preparada pro momento em que eu decidir sair da tocaia e te assaltar.
Melhor é não esperar nada, por que, de tanto sofrer na maldade, minh'alma se fez cansada e nada melhor do que o medo pra me prevenir.

Tô com a vida inundada e a correnteza não me deixa esperar
Tô jantando migalhas pra não saber como voltar
Melhor sair do esconderijo, cortar caminho e pular no primeiro abismo. Correria na frente, viveria perigos pra te impressionar.
Melhor não arriscar nada, nem esperar na encolha. Melhor seguir minha vida, ouvir a voz da ferida e aproveitar as novidades que não param de me coagir.


Tô fitando essa lua que se fez minguada pra me perturbar
Tô de cara amarrada, sem saber direito com que cara ficar
Melhor seria não ter que sentir nada, e ainda que não sinta, não ter com o que me preocupar.
Melhor era nem encarar a lua, nem dar bola pra alvorada, ficar só no meu canto, de barba molhada. Melhor deixar pra lá.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Quebra na pedra (Mais noites e lembranças complicadas)

Victor Rocha Nascimento

Deparei-me com aquela espuma de algodão golpeando a velha pedra. Quanto mais a água quebra o tempo passa e, como sempre, incomoda. Não são sentimentos novos nem velhos. O que eu senti foi uma saudade do tempo em que eu ainda não era descrente.
Saudade de imaginar que daria certo... Saudade de acreditar que poderia ser simples assim.
O sol morrendo nos meus olhos, como havia sido noutro dia. Não me atrevi a colocar os pés diretamente na pedra. Sei lá, não achei justo. Fiquei sentindo o tempo que passou e me arrebunhando com o que mudei.
Temos que ser masoquistas para aprender a viver. Não há como mudar sem se deixar ferir e não há nada mais corriqueiro do que as mudanças. Não que seja trágico, mas é só o que se tem.
Não agonizo em tristezas ao me deparar com a desilusão. É diferente. Desengano é crescimento, te fazer mais forte, mais maduro. O problema é não poder suportar o peso da triste realidade que nos convêm. É foda quando notamos que, às vezes, temos que encarar um mundo que não o nosso. Esse aí de fora... O mundo mútuo. Mundo dos outros. Mundo de todos comuns.
O cheiro do mar, a hora... Tudo igual, salvo pela solidão que foi fundamental para contrastar os momentos. Senti-me espectador de um filme antigo, uma bobagem de criança. Não sei mais o que quero e nem se tenho que querer alguma coisa. Talvez por medo e por fraco que sou não queira só deixar rolar. Talvez medo novo, filho de um sofrimento banal. O susto de ser apunhalado pela felicidade.
Medo de ser um idiota, de me sentir um idiota, de não estar fazendo o que é certo.
Medo de que a memória me falhe por conveniência.
Sofrer não. Do sofrimento aprendi a não ter medo e sim respeitar. Meu medo maior é que pelo descuido das emoções eu regrida, seja iludido pela fertilidade dessa cabeça vazia.
Me arrastar pela areia até essa maldita pedra não me fez mais fraco por ela. As lembranças que me tocaram foram mais alem. Me fizeram pensar em todas e sobre me cuidar para não cair em novos enganos. Não tenho como saber se a imunidade que recebi está a favor ou contra um final menos trágico.
Verdade que não consegui ficar por muito tempo nesse lugar que tanto me afeta, mas não adiantou. A cisma já estava instaurada e agora o que me resta é respirar e pensar bastante... Ou não.

sábado, 19 de dezembro de 2009

Perdido em fatos: A crônica da triste solidão lógica.

Victor Rocha Nascimento

Quando abri os olhos senti que a porta da frente acabara de colar no alisar. Ela foi embora. O lado esquerdo da cama ainda estava quente, mas já perdia parte do perfume doce da menina. Sempre fico do lado direito. A cama grande é puro comodismo, conforto. Uma regalia que dei a mim mesmo para aproveitar corpos novos e ter lados bem definidos. Uma direita bem definida! É só uma mania, um costume. É tudo lógica, psicológico, estudado e compreendido. É fácil lidar com o que se estuda e entende.

*

Sei exatamente como as conquistar, mas já perdeu o sentido faz tempo. Faço pelo desejo da carne e nada mais. Não as conheço e não poderia afirmar nossa compatibilidade. De modo geral, são mulheres, feitas para o sexo assim como eu. Nada de alma gêmea.

Exaustas do meu descaso, elas sempre se vão e eu pouco ligo.

*

Para que o amor-amante se não for com o espécime perfeito? Para que se envolver na possibilidade grosseira do erro? Para que procurar se levar em conta as probabilidades?

Sei bem sobre mim, sobre o que quero e sobre o que daria certo. Sei tudo sobre a maioria delas e nenhuma dessas poderia me fazer feliz. Não se trata de loucura, de forma alguma. Apenas lógica.

Pensando bem... Pode ser tudo a mesma coisa.

*

Também não sou tão lógico, apenas uso a cabeça em momentos pouco costumeiros para a maioria. Vivo sobre outros aspectos, outros paradigmas.

Acredito que não seja errado ou desumano. Apenas escolhi um caminho diferente. Pelo menos prefiro pensar assim. Emociono-me com um sorriso verdadeiro, me apaixono por brilhos na bola dos olhos, me excito com atitudes. Não ligo muito mais para todas essas bundas perfeitas e seios fartos que, de tantos, farto sou eu. A era das descobertas adolescentes a muito passou. Imerso nessa lógica, sou caçador de humanidade.

*

*

Levanto e corro até a porta num cuidadoso silêncio. Olho pela fresta e ela já sumiu da rua. Fico totalmente só, mas feliz. Não gosto de viver assim, mas seria pior viver por um romance obrigado, sem os fundamentos necessários, sem verdade ou sentimento. Ahh, e teríamos que ser muito compatíveis. Teria que dar certo.

Posso aceitar que sou um tanto exigente. É. É isso que eu sou.

Depois de relaxar o corpo a mascara cai e não tenho mais motivos para usá-la. Volto a ser eu mesmo e assusto.

*

Eu acredito que exista uma alma gêmea, uma pessoa perfeita e espero fielmente encontra-la. Mas se existirem seis ainda é pouco. Sorte seria encontrar uma das seis se estamos todos espalhados de forma aleatória nesse mundo.

Bem... Talvez não seja... Talvez Deus tenha pensado nisso.

*

Vou planejar meu dia. Procurar uma meta e fazer a semana passar. Espero que a perfeição me encontre enquanto assassino minhas horas. Se ao acaso o corpo pede, sempre existem mulheres perdidas por aí, completamente previsíveis as quais posso levar para o meu lado esquerdo. Não sei se é o certo e cansei de tentar julgar, mas acho que elas não se importam tanto e, caso se importem, o sofrimento não dura muito tempo.

*

Existe todo o tipo de mulher. Todo mesmo. Tanto que acho possível que exista alguma para mim. Enquanto espero, sei que posso contar com aquelas manipuláveis e aquelas mais putas (Juntas são maioria. O que sobra é uma fatia muito fina do bolo). Assim não me preocupo. O lado esquerdo da minha cama sempre terá um cheiro breve e doce de abandono.

Deus, tenho que tomar cuidado! Esse cheiro está me viciando.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Loucura de Maria

Victor Rocha Nascimento

Brota, Maria. Maria louca brota. Brota Maria, que a loucura te vicia; Manda aos berros toda certeza pra fora.
A flor queimava em poesia, o cheiro penetrava a toda porta. Quem diria que a loucura de Maria renasceria flores mortas?
Olha esse beijo e olha esse mel. Recorda dos frutos, os que nascem do céu. Maria transbordava sua loucura em palavras, recitava a morte para entender a vida, estudava costumes para desfazer mentiras, explodia amor para selarem feridas.
Maria amava o diferente e, por completa, dele queria ser.
De tanto buscar as respostas do mundo, Maria entendia o sentido das coisas, previa atitudes e influenciava os fracos ao seu redor. Maria dominava e fascinava de louca que era.
O bom era ser diferente e, deste ponto, completa. De tanto entender, escolher o que quer ser. Ao por do sol ela brotava, simplesmente, para nascer numa nova era.
Excita e faz milagre. O mundo é tão profundo que ao ser, desfaz mapas e sociedades. Assassina a lógica, deturpa a mente frágil do comodismo da cidade.
E essa realidade, que de real não tem nada e apenas existe para suprir as necessidades da mente fraca, era companheira de Maria, que fingia que não via só para ter com quem brincar.
Se conta o mundo, o resto vem e assusta. A possibilidade de saber, aprender e não parar é o que faz a vida repleta de sentido. Maria entendia tão bem tudo que passou a conviver com espíritos. Mundo novo que assusta, distorce e se nega por inteiro. Ela passou a conviver entre mundos e se acostumou no abandono do receio.
Brota, brota, Maria. Hoje é dia. Brota, brota, minha filha. Lá de trás vem um nevoeiro e só você para cuidar dessa gente nula de verdade. Brota mais uma vez, e sempre brota, que loucura é ver no sonho um pesadelo.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

"Queremos Post!"

Victor Rocha Nascimento

Os tempos não são dos melhores para postar. Sobre tudo depois de escrever um texto imenso em "O rei do 1307" e perder a bosta toda...

Mari, como sempre, anda me cobrando muito, e agora deu para fazer desenhos de protesto... tsc tsc

"fiz um apelo tipo propaganda de pobre :)"
"eu e o resto do mundo queremos
você contrariando tanta gente... tsc" (Mari Velloso, no msn)


Ahhh... Ela faz outro desenho também... Que seria eu! =D

"*não é sacanagem, eu só não sei desenhar!
*vou explicar.
*as cores são péssimas
*mas era pra você ter a carinha tricolor
*tipo só o vermelho, grená, seja lá o que for, verde e branco no rosto
*sabe aquelas "esse tem cara de tricolor!"? então, hahaha
*e os seus olhinhos rindo todos "^^"
*e você dando tchauzinho, porque é um fofo simpático!" (Mari Velloso, no msn, outra vez)

Nessa pensei que tava tomando um soco...

"essa sou eu
apertando sua bochecha
e desenhando com pressa tbm
é, parece mais mesmo!
a simetria dos meus braços tá tipo... perfeita" (Mari Velloso, em mais uma obra prima)


Pois bem, lamento, mas só devo voltar a postar nas férias.
Perdão Mari e perdão suposto mundo! hahaha
Por hora, fiquem com os belos e simpáticos desenhos desta guria fofa! Até!

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Aos comuns covardes de epidemia

Victor Rocha Nascimento


Fujo é por causa da garoa. Fujo por causa dela.
A realidade coberta de relva. Realidade engraçada. Me intriga que seja tão bela quanto o sonho e tão diferente quanto a sinceridade. Me intriga sua graça e seu ledo. Me alegra sua simplicidade e me divertem suas ironias.
É o sonho que comanda o meu humor e uso a boa-velha realidade como válvula de escape.

Sociedade cretina e displicente que deixou voar o mapa enquanto abaixava para atar os sapatos. Povo azedo, incompleto e hipócrita. Povo burro e confuso. Temo que ainda falte muito ou que já não tenha mais volta.
Covardes da carne!
Não se acham, tampouco escondem os vacilos da verdade.
Covardes! Se debilitam no que julgam e se esquivam da maldade.
Covardes estes que temem e que mentem. Estes que temem mentir por falta de liberdade e por medo de consequencias.
Covardes os que aceitam, os que só se ajeitam, os que comem, vomitam e roubam.
Já passou o tempo de se redimir e crescer; o tempo de ser gente, de virar homem, de se tornar forte e de sofrer.
O tal bicho evoluiu para uma coisa estranha, de pouco sentido e serventia.
É o comodismo pai da bastarda covardia e é ela quem emprenha da maldade.
É fraqueza, carência, silencio e rebeldia. Consentimento e prevenção.
Já virou rotina, já é concreto. É padrão.
Do homem nasceu o covarde e o que resta é regressão.
Bem aventurados os que se perderam no caminho da perfeição. Os que tropeçaram nas margens da sociedade, caíram para fora, não evoluíram para essa fragilidade.
Bem aventurados os que insistem em existir. Os que teimam em viver. Os que lutam para passar.
A estes, é destinada a vida e vida plena. Também destinado o sofrimento e o açoitamento de peças viradas, sem encaixe.
Bem aventurados os retardados, que não se conformam e não se corromperam da realidade. Os que não se acovardam por simples vaidade.
Já se esqueceu o quanto é bom banalizar o amor; de como é bom amar de fato, e amar, amar e amar. Esqueceu o que importa e sobre como se edificar.
O mundo é dominado por almas mortas e corpos podres, sedentos de atenção e carentes de sentido. O mundo evoluiu na inteligência dos covardes, e nós, idiotas (simplesmente), ficamos para trás.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Chorinho e mel

Victor Rocha Nascimento

Tocava o seu chorinho de mansinho, num cantinho, que era, por vias e veias de orgulho, pra não levantar a mínima suspeita.
Escorria dos olhos a melodia. Procurava com a ponta dos dedos o mel, pro dia de sal cortar em doce.
Que fuga mais adequada!
No mel da melodia, o choro se desfaz e a música explode o peito de sentimentos sagrados e desfeitos.
Que união mais perfeita, onde o choro foge da cara e corre pros dedos. O mel sai dos dedos e lambuza a cara. Tudo se endireita.
O tempo passa com back de choro, coberto com a vida e com o que há de viver. Olha, escuta e sente. A vida é namoro e o canto é consolo.
Logo, logo tristeza já é música, o mel encharca o dia e o coração se ajeita pra nova folia.
Toca o choro, bem quietinho, que o tempo te espera. A música é o poema no ar e o poema é sentimento no papel. Respira!
Toca o choro, chora e toca. Toca pra frente a vida. De tanto chorar, a gente acaba tocando melhor.
Se toca! Chora o mel. Mela o dia. Fica no cantinho, só chorando e tocando e ouvindo o choro. Fica no cantinho, bem quietinho, pra depois voltar pro jogo.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Rebate a um discurso frágil, de armadura

Victor Rocha Nascimento

Cê não faz idéia do que eu carrego dentro de mim
Nem sabe do canto do pássaro e menos da tempestade que habita meu peito.
Não sabe do terço, metade. Não sabe o enredo das botas batidas e das caras dadas a cuspe.
Cê não faz idéia do que já passou por aqui. Quem vê assim não da trela nem desconfia.
Para esses, que julgam me conhecer e por subestimar, entender. Para esses que por um golpe ilhado em arrogância, me decifram no relance. Para que estes saibam que de mim não entendem nem o gêneses. Não sou mais um, e de longe avisto o banal, o comum. Sou apocalíptico, sou profético.
Se tem olhos limitados para aparências, não deveria julgar para não findar no retardo do lodo. Se é limitado a sí mesmo e aos seus medos, não deveria se quer pensar em me dirigir conceitos. Não faz idéia de quem eu sou.
Pois saibam que sou fruto do que os 12 mestres gritaram aos ventos do novo mundo e viajo pelos 7 caminhos que me apontaram em sonhos velhos. Passados 100 anos, não o culpo e desconto suas barbas e sua careca no feto ridículo que habita seus olhos.

Cê não faz idéia do quanto eu te conheço, e de como conheço gente assim.
Não faz idéia do quanto conheço a mim mesmo. Do quanto bato no peito e açoito limites. Não imagina o quanto estudo essa lógica cretina de vocês. Se fizesse a mínima idéia, calaria a boca e se refugiaria na sua intima e sempre alerta covardia.
Não me venha falar sobre inteligência ou sobre tempo. O tempo só lhe serviu para corroer ossos e tornar a carne funda. Não me venha falar de babaquices enquanto seu discurso é uma tentativa frustrada de pisotear corpos fracos a custo de formar pirâmides mortas. Não é suficientemente forte, tampouco sábio a ponto de conseguir valer de suas próprias glórias para fixar castelos. É um merda que com bocas cortadas atropela o mundo antes que possa ser questionado e fragilizado na busca perdida por uma resposta.

Aos que restam...
Se me apresento em plenitude, subestima; mas se me lanço em metades, degusta, me decifra e me entende como de fato sou. Me leia aos poucos e de mente livre, me leia, se quer saber sobre mim. Nada expõe tanto e nada me cristaliza mais do que o profundo que despejo em letras.

Não julgais um texto pelo lead.

sábado, 24 de outubro de 2009

O romeiro íntimo

Victor Rocha Nascimento

O cara era um cearense típico. Cabeça chata, velhice de gastura e determinação no brilho dos olhos. Usava roupa fina, ainda com etiqueta, para divulgar a marca, e tentava manter a poeira dos caminhos distante de sua seda perfeita. Era como se fosse revestido de um campo protetor, e qualquer ameça à sua integridade era ferozmente atacada e deixada para trás com o vento.

Além das vestes impecáveis, e do chapéu coco, não carregava mais nada que o homem normal, comum, idiota, possa ver, assim, na cara. Fora isso, cantava para si mesmo, e como cantava...

Viajava montado num burro magro e de baixa estatura, mas que abusava de uma petulância e finura comparável à de seu cavaleiro trovador.

Era uma visão digna de espanto e de admiração. Eles percorriam o mundo pelas estradas mais longas e turbulentas. Quem bebe das águas barrentas empoçadas no mundo não pode mais voltar atrás. Vivia de aventuras e de novidades. Era abastecido pelos sustos recreados da vida e nem a fome, nem a sede e nem dificuldade alguma poderia fazer parar.

Alimentava o burro com os ratos largados nas noites, dos quais partilhava e dava de beber sua saliva. Não pedia, nem chorava, nem perguntava. Se não era feliz, pelo menos tinha se acomodado faz tempo.

Não importava viver, nem reclamar, nem voltar. Ele cruzava o mundo e rasgava caminhos pela lua até chegar no mar. Ele mantinha a pose e se respeitava. Abençoava suas rotas e as rotinas que aprendera a cultivar.

Ele era forte. Tão forte quanto parecia fraco de corpo. Era sábio como só a vida pode dignificar um homem. Era portador de quase mil dons e os gastava como quem tem pode gastar.

Vivia longe de amarras. Era viúvo de uma sociedade e de uma nação. Era tão solitário quanto pode ser um guerreiro que vive exilado com seu cavalo, e tão repleto como quem vive num monastério.

Era São Jorge e era glutão. Era a coruja e era o dragão. Ele era e ainda é.

Com sua lança reluzente riscava mapas na areia e seguia os caminhos do coração.

Ele respirava e respeitava a terra que lhe permitia passar. Era peregrino, era viajante, era desbravador sem rumo, era doente da sua verdade. Ele era dono das suas próprias narinas fracas e era deus da sua infinita liberdade.

Eu vi o tal passando nessa rua, nessa noite. Vi também por tardes e manhãs rodando por cantos assim. Por vezes o vejo nos bairros, com várias caras, vários burros, várias roupas. Ele é o cavaleiro sem nome, é o povo brasileiro, é o campeão do futebol.

Costumo olhar para ele, sem culpa e sem dó. O vejo como companheiro, como familiar, como amigo intimo até. O vejo gritando nomes e contando causos que só entende quem entende o que é sofrer. O vejo contando estrelas, mirando sereias e vendo o futuro de outrora lhe enxotar.

Ele é um cara digno. Merece meu respeito e meu orgulho. É cabra valente, forte como só.

Um dia vou ser como ele! Sei que vou. Se já não sou, um dia serei, e vejo até onde eu consigo chegar. Por hora observo a plenitude do velho cearense, bem vestido, que cavalga pelo mundo procurando um canto, um bando, ou uma coberta boa... Ou um desafio novo, ou um nome novo, ou uma nova história com que possa se contentar.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Mundo que dilata: Um cículo com caminhos tortuosos

Victor Rocha Nascimento

A vida enrola uma cadeia de obstáculos tão confusa que só se perdendo para se reencontrar, e quando a gente acha, dá vontade de voltar atrás. O gosto do impossível comove, ilude; e as fantasias da mente carecem de um desafio encarnado na realidade para brilhar em graça. Nos transviamos na ilusão dessa necessidade. É da loucura cismada que nasce o vazio na alma. É a vida, de tão enrolada, que mistifica o boçal.
Não seja tão lamuriento, jovem sonhador!
Já estava na hora de enterrar o cobre que me amarrava e voltar a ser eu mesmo.
Quando nos identificamos e amamos muito(seja uma pessoa, um animal, um objeto ou uma forma de vida), ficamos cegos e invariavelmente, se de fato amamos, dependentes. Eu amava e me vi sedento na abstinência do meu prazer, de uma hora para outra.
Acho que parte daquela velha idéia batida do homem gostar de sofrer. Não é que para ser feliz basta querer? E eu com a mania de esquecer isso de tempo em tempo...
Andava gritando a rouquidão de um tom menor, sem saber que ainda era dia de rock. Caçava belezas e fantasias passadas. Perdia tempo catando a vida sem lembrar que ela já estava escorrendo por mim.
Ô vidinha simples... Tão simples que as vezes enche o saco e fazemos de tudo para complicar. É besteira. O segredo está em sabermos como tornar o simples renovável e saboroso.
Quando lembro que as coisas são como são e deixo de lado o mundo complexo com o qual gosto de farrear vez ou outra, parece que posso encher todo meu pulmão, até o ultimo litro, com muita facilidade. Dá para saborear o órgão transbordante. Um alívio devido após meses e meses respirando metades.
Mudaram a fotografia do mundo. Eu mudei. Mudei meus olhos. O ar é mais leve e limpo, tudo é mais fácil e compreensível. Da até vontade de sair do comodismo e ir pelejar. Da vontade de ser melhor e gargalhar para o vento. De tão completo, da vontade de ajudar.
E o gozo e a liberdade. Os amigos e os desconhecidos. A farra e a esbórnia do que é belo e pacífico.
Agora já mais calmo, e livre da minha própria loucura, posso brincar de ser feliz. Brincar de ter potencial, de dar valor ao que quero e de não necessitar de expectativas para seguir. As metas apenas me guiam e já não me dominam. Um dia de cada vez, uma alegria de cada vez. E a vida vai sendo devidamente aproveitada.

A vida nos dá muitos mais presentes se a gente não esperar nada dela, apenas viver.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Apertado

Victor Rocha Nascimento

De dentro dum quarto abafado, de paredes cada vez mais apertadas e ritmado pelo som irritante do ventilador, imagino a vida do lado de fora. Enquanto essa poeira velha sobe e entope minhas narinas fracas e sangrentas, imagino o ar doce e o quanto doce deve ser uma poeira nova.
Um mundo quase tão grande e pleno quanto o que anseio existe do lado de fora, e me convido a desvendá-lo com olhos de criança, mas o quarto quente insiste e prende me trancando na simplicidade do mesmo. Seriam as poucas brechas? Seria o medo? Seria a contradição causada pelos princípios ou talvez os princípios que contradizem entre sí?
Sei que o momento é unico e a oportunidade se vai como o pensamento. Sei que para todo o fogo que me arde por dentro existe um alívio no mundo dos homens e das sociedades... Então que bosta ainda me faz estar trancado nesse quarto? Onde estão os amigos e os desconhecidos e as descobertas? Onde está o mundo e as novidades que preciso para me ter completo? Será que realmente alguma hora posso me sentir completo?
Acho que minha deficiência não parte de saciar desejos mas de equilibrar a carência e o prazer. Não quero estar completo, até mesmo porque julgo este estado uma utopia. Tenho que estar sendo nutrido constantemente de novidades, e nunca ser satisfeito. Tenho que estudar, descobrir, viver... Acho que foi por aí que eu encontrei a minha forma de gastar a vida.
Digo "gastar" sem culpa... A vida é como uma caixa de areia ou uma garrafa de vinho que a cada instante vai sendo consumida. Nos resta ter a sapiência de saborear cada momento da melhor forma até que a garrafa se esgote, gota por gota.
Diante deste devaneio do tempo volto a lembrar que estou preso nas quatro paredes do meu quarto. Uma bosta de um filminho na tv, que por pouco não notei que passava, o ar quente a a poeira da minha intimidade. Acho que as implicâncias do meu pulmão e das minhas narinas nada mais são do que um estimulo para que eu mate o ócio com os dentes e corra cego.
Já é imprescindível, vou sair para tomar um café ou sei lá. Nem que seja sair para pensar, sair para não fazer nada, só pra respirar outro ar.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Catarse - O passado numa nova era

Victor Rocha Nascimento

Bate. Bate o vento. Empurra a porta e abre a coragem, que hoje só é tarde pro que já passou.
Bate. Rebate o argumento. Libera a apostasia, que o mundo vicia e o tempo condena quem nunca tentou.
Não lamenta, pelo contrário, se envolve! Hoje, essa dor que te emprenha e afugenta é só a lembrança do que ja foi dor.

Vai... Corre o mundo. Bate no peito e engole quimeras, que a vida é uma guerra e que guerra é amar!
Vai... Faz do mundo sua festa. Lambe as feridas e berra orgulho. Corre que é pro mundo sentir o teu cheiro no ar.

-- -- --

Era uma flor e eu sonhava primavera
Era o que era e eu queria ela pra mim
Era a guerrilha de uma carícia sincera
Era menina, era mulher, era festim.
Ahh, quem diria que seria tão perfeito?
Ahh, quem apostaria num fim?

Não era eu o certo, nem ela e nem culpa dos dois, foi. Certo era que ficasse o que ficou, como a perfeita harmonia que só.
Pobre besta. Eu que nunca pensei que do passado, alguma ponta de maturidade viesse me cutucar.
Mais me espanta a nobreza do velho e a superação do amor.
Hoje já sei que posso carinhar o futuro enquanto afago o passado. Posso ser o que era, e ainda mais completo, mesmo sem ela. Posso ser um amigo antigo e antigo homem também.
Entendo os motivos e amo o que me resta. Mesmo que dessa forma inesperada e diferente... Mas que é bela, e bela, e bela.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Dolci occhi

Victor Rocha Nascimento

É de carência mas também é de vida.
Os toques da carne se aprofundam nos sonhos mais belos e deprimentes. Ela não me beijou, mas o queria como eu mesmo não posso explicar. Era minha e eu dela. Mas eis que vem o sol de uma nova manhã queima o sonho em brasa.
Não é amor, nem prosa, nem verso. É a busca do sentido, a busca pelo completo.
E não tem motivo. Nesses casos nunca tem. É uma admiração, uma fantasia, uma empolgação. Também não digo que não esteja apaixonado, não poderia. É coisa bem diferente, tal que humilha meu vocabulário na busca desastrosa por alguma definição digna ou um conceito coerente.

Não é todo dia que dois olhos, perdidos na multidão, encantam a alma de um pobre desiludido como eu. Só os olhos, como um tiro no meio da testa. Depois vem o jeito, o riso, o andar, o estilo e me fazem de frouxo. Mas de início, só os olhos. Me apaixonei por um olhar. Quanto a isso não posso fazer nada. Nem negar, nem fugir, nem fingir. São eles que me forçam a desviar a atenção e maltratam meu orgulho. Os olhos, como aiesthesis.
Pode ser que haja alguma coisa de absurdo nisso, mas é a verdade. Não sei muito sobre ela. Não sei sua história, não senti suas mãos, por pouco ouvi sua voz... Mas aqueles olhos...
Não faz muito sentido, mas, estranhamente, me parece muito lógico. Podem dizer que não é provável, mas foi au concour para mim. E pode não ser comum, tampouco normal... Mas eu também não sou.

É, garota... Cê me pegou de jeito!

Tenho a mania chatinha de acreditar que, pelos olhos, consigo chegar mais perto da verdade das pessoas. As famosas 'janelas da alma' não apenas me intrigam como, certas vezes, conversam comigo em bom tom. Se a dona desses olhos não tem, deveras, algo de muito especial, não sei mais no que acreditar.
Talvez tenha só me hipnotizado, mas já é tarde. Tô preso no efeito desse brilho e já não sei bem como resistir. Já nem quero resistir. Eu quero é ver no que vai dar.

Algumas vezes tive a sorte grande de cruzar olhares. Ter a certeza de que os meus olhos, enquanto admiravam, também eram encarados. Quando essa sorte rara dana de acontecer, meus sentidos se contorcem. É como um aperitivo do paraíso. Fico bobo, perco a guarda, me bestifico. Que poder tem essa guria, que só de olhar já me bamba as pernas? Logo eu, que bato no peito pela minha própria segurança.

Já nem sei se escrevo para me declarar ou para me consolar com as letras. Ora, que de consolo só me serve uma resposta. Uma alegria ou uma cara quebrada, tanto faz.
Eu tenho é que agir, mas não faço idéia de por onde começar. Tenho medo e anseio teu encontro. Procuro caminhos que cismam em se fechar. Os típicos são toscos e talvez seja melhor me contentar em espiar, de longe, o seu olhar, do que o risco de passar o resto do tempo sofrendo as dores de uma cara virada.
Poderias fazer isso comigo? Me privar da doçura dos teus olhos? Me livrar do prazer de mirar teu brilho? Poderias ser tão pouco piedosa?
Se um dia Deus me fez gamar em olhares, por certo não era para deixar, logo esse, escapar.

"Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra."


terça-feira, 29 de setembro de 2009

Devaneios loucos, fruto da rotina

Victor Rocha Nascimento

Viajar na madrugada é sempre assim. Você, suas idéias e suas lembranças. O frio. As sombras e as trombadas. Desconhecidos babam e roncam à sua volta compondo um cenário caricato(ora, se não é esse o papel dos desconhecidos). Um show de paisagens pela janela. E sempre, sempre só. Acho que é um momento propício para criar.

É minha rotina de viagens. Se não leio, escrevo, escrevo, escrevo e parece sempre ter uma ultima gota de idéia pra respingar no papel. O único obstáculo são estes diachos desses tremeliques que me fazem riscar e amassar a folha inteira. Como se já não bastassem os meus garranchos costumeiros. (por isso peguei o lap)

Um ronca, outro não se inquieta e procura loucamente um jeito de se acomodar, outro se delicia no ópio dos fones de ouvido no ultimo volume... E todos eles se quer existem, de fato, para mim...

Quantas vidas. Quantas idéias não devem nascer de um instante escuro, numa viagem pela madrugada? Quantas rotinas, quantos sentimentos apertados entre braços de poltronas pouco confortáveis. Quanto barulho e quanto silencio. Quantas contradições. Cara... Hora estranha para poder morrer.

Não, pensando bem, talvez não houvesse hora melhor.

Sonhos, pensamentos e sentimentos presos num ônibus, apertados e se misturando por falta de espaço... Tanta fertilidade e de repente puft. Acabou.

E agora? O que vem? Nada de muito diferente. Ainda estou num plano de idéias. Estou refletindo e nada mais existe se não eu comigo mesmo. Não sinto, nem escuto, mesmo que haja muito barulho.

Só algumas sombras, uns tremeliques e eu. Minhas reflexões. Talvez uma viagem solitária seja mesmo o mais próximo que podemos chegar da morte. Existimos só em nós mesmos. Somos completos e rendemos mais.

Talvez seja a hora em que mais estejamos preparados.

Como acontece pouco importa. Importa é que a passagem é menos sofrida. Somos a plenitude de nós mesmos e o resto é só senário. Somos alma e as matérias são insignificantes. Somos idéias e o mundo fica cada vez mais distante da imensidão do nosso mais entranhável.

Engraçado pensar na morte, e pensar, e viver. Talvez nunca me sinta tão vivo. Talvez só quando com uma garota ou jogando vôlei, mas talvez não. Talvez nunca me sinta tão vivo quando quando penso sobre a morte e, de fato, um dos meus momentos mais lúcidos se dá quando penso, e penso, e penso e sou todo eu. Sou mais real quando vivo nos sonhos.

Rá. Muito divertido o que pode-se fazer quando se está só. Essa rotina de ônibus e estrada me faz não poder mais parar de viajar. Melhor dormir...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O devorador de pecados

Victor Rocha Nascimento

Sempre tem que ter alguém para tomar as dores. Para se sacrificar. Para resolver. Alguém que ajude e pague o preço de milhares. O mundo é feito de martiris e a evolução foi escalada por sobre suas costas.
Algumas vezes, até mesmo eles carecem de desabafos...

'Que coisa mais bizarra é essa de poder entender os sentimentos. Poder mastigar e engolir. Saborear as agonias e orgasmos no sumo. Me corromper da culpa e da resposta do mundo.
Se não entendo os motivos que formam os homens, certamente entendo seu interior. Compartilho tão bem que o faço renascer dentro de mim e me torno xifópago de seus sentidos.
Não apenas devoro pecados, como também sonhos, amores e reações. Me lambuzo ao livrá-los de tudo isso e martirizo minha própria força.
Acho que tudo não passa de um teste, uma preparação. Me confundo no choque de minha humanidade e meu dom. Peco ferozmente quando penso sobre mim mesmo. Não tenho escolha e nem futuro. Apenas o agora importa e me movo com objetivos imediatos e inesperados.
Meus sonhos me afetam mais que a realidade e de fato minha realidade não vale mais do que um sonho. Sou peregrino em caminhos escuros que entortam motivos e limpam vidas.
Me desculpem se, por hora, falo apenas de mim. Garanto que por mais ridículo que possa parecer, não sou eu o culpado.
Faço parte de uma corrente. Um trabalho complicado e destrutivo. Talvez por isso eu não possa coseguir levar ninguém comigo. Todas as tentativas foram frustradas e pareço ter de me desvencilhar do que vinha pronto. Não posso ser para um se não para todos.
Mas sei bem que as impossibilidades nascem apenas em virtude de um bom motivo. Não tenho que reclamar. Nasci para isso e se não me contentar, me converto em um toco de madeira.
As verdades me afetam tanto quando a vocês, a diferença é que as vejo mais claras, mais completas.
Sem susto! Posso ser apenas mais um louco que se mete a falar. Penso em devaneios ter visto coisas demais. Talvez coisas que não existam em seu mundo. Coisas que ainda não tenham acontecido ou que nem possam acontecer. Mas certamente vejo coisas que você não vê, nem acredita, mas sente claramente.'

A vida é um pequeno rastro da verdade gloriosa e embriagante que nos envolve. Pare de respirar e tudo vai parecer mais límpido e assustador.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Lembranças de uma noite que não se vai

Victor Rocha Nascimento

Situaçãozinha desgraçada essa tal... Mesmo depois de tanto tempo, e de tanto aprender, tanto mudar, a gente acaba voltando pro mesmo lugar.
Tanta vontade, tanto choro e tanto grito para no final não fazer diferença. Naquela noite que a verdade me cuspiu na cara, me custava menos aceitar a vergonha dos fatos do que imaginar que seria só a primeira vez. Pior que era! E eu não notava, e continuo sem notar, que vai ser tudo sempre igual. Enquanto eu tento levar as coisas do meu jeito, vem o jeito das coisas e me humilha até me arrancar desistência.
Verdade maldita que só mostra meia face e me estapeia as duas com as mãos sujas em decepção!
Naquela noite parecia que, mesmo com a dor e com o sal me cortando o rosto, o principal havia sido dito e nada mais doeria tanto. Pobre tolo que eu fui, e tenho a mania escrota de ainda ser. Acontece que ou não aprendemos nada, ou esquecemos tudo, e voltamos aos mesmos erros. Fedemos a passado.
Talvez esteja na hora de tomar um choque brabo pra acordar. Talvez devesse mesmo mudar por completo, mas pode ser impossível chegar a conquistar tal fortuna. Quem sabe eu só esteja brincando comigo mesmo e não queira ou não precise mudar. Não seria tão improvável. O bicho homem é masoquista por natureza e viciado em se ferrar. Deve ser por isso que, por mais que a gente tome na cara, viramos a outra para que venha a a maldita da verdade dar mais, e mais, e mais...
Tudo tão simples, tão fácil e tão impossível.
A noite era fria e me faltava muito o ar. Só tinha força para sentir o desprezo do resto e o gelo do chão que me castigava. Não suportava o peso da verdade me esmagando e o mundo inteiro fugindo da vista.
Por fim, não restou a pena nem a mão que eu esperava. Me restou mais uma vez a danada da verdade, me fazendo um pacto de sangue, me obrigando a ser forte e a ser eu, aguentar a merdalhada toda. Em troca, a adaptação e felicidade. Pacto desgraçado que até hoje não vi se cumprir. Fiz minha parte e ainda espero que a verdade seja justa algum dia.
Noite tão fria que desconfio que tremia era por medo. Foi nessa noite que aprendi a ser forte, que aprendi não chorar.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Ratione materiae

Victor Rocha Nascimento

Falam sobre como gira a terra. Como giram os planetas, estrelas e luas. Como gravitam e imprimem forças tremendas criando harmonia perfeita em todo o universo.
Pois vos digo que quem gira sou eu, que nem gravidade sinto ou tenho, vivo a flutuar em minha totalidade imperfeita e confusa, mas incrível e eterna.
Giramos todos e somente nós. Pouco importa como, mas giramos e fazemos com que todo o resto queira nos acompanhar por prazer e necessidade. Carecem do sentido e função que apenas nós podemos dar.
E o centro do mundo nada mais é que um pontinho bêbado e tinhoso, que não consegue achar um lugar para se inquietar e nem casa própria tem. Vive rodopiando por aí, sem rumo, e ai de quem quiser seguir seu rítmo ou girar por seu entorno. Tentamos sempre mandar nas coordenadas do tal pontinho, mas só a loucura de sua própria bebedeira dita onde ele realmente vai ficar.
Mundo maravilhoso esse. Todo exatista, todo certinho, perfeito para nós.
Mundo feito dos numeros, do sumo da exatidão e por isso perfeito em sua beleza . Mas no fim, pouco importa a perfeição das contas. O que deveras conta é a matemática dos amantes e cabe aos poetas, e não aos matemáticos, o dever de tudo contar.
É na alma que se escondem os mistérios e é a imaginação que os faz importantes.
Não somos nada sem nós mesmos e nem o mundo importa algo. Somos patronos de nossos mundos e controlamos tudo que nos envolve, resta apenas podermos nos controlar.
De fato, sou eu quem gira e giramos todos nós.

o melhor de buscar uma peleja textual aos puramente exatístas é que eles vão se defender com números :P

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Poema dos mil amores

Victor Rocha Nascimento

Vem chegando a nova primavera
Justamente como o inverno pintou.
O óleo sobre a tela marcando o frio da ilusão metida a realidade.
E para você que pensou no mundo de um dia...
Resta a pena e o vício de velar sua ingenuidade.
Não há chance, nem há volta. Não é o real que me incomoda.
Me incomoda é o sonho que existe casado à esperança.
Escrevo não para um, mas para meus mil amores.
Cada um, de mim, leva uma parte. Cada um me angustia e precipita.
Cada um me acende e me perfura o pulmão.
Mesmo os que já foram, os que são e os que são sonhos.
E eu, deles, levo o infinito amor e desejo por suas virtudes, e o horror por seus erros.
Vivo porque as amo e vivem sem meu amor.
Mas o que me dói são as serifas das minhas próprias letras, que me rasgam, e não a falta da resposta.
Vivo dela, assim como vivo da dor e da esperança que tanto me incomodam.
De mim partem tantos amores, tantos motivos e tanto carinho.
Do mundo a repetição trágica do que jamais é visto.
Choro por mim e choro por elas, que são vítimas do meu desejo.
De instante, resta esperar que as mil se multipliquem e um dia virem uma.
De instante, não resta esperar nada.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O Velho de Aparência

Victor Rocha Nascimento

Depois de tantos anos de birita incessante, o Velho de Aparência decidiu parar por um dia.
Não pense que foi fácil, mas também não foi tão complicado quanto parecia. Bastou um pouco mais de vontade e tratar o caso como desafio que deu certo.
O dia que seguiu foi desconcertante. Algo entre o medo das mudanças e a admiração pelo novo.
Ao acordar, sentiu a cabeça quilos mais leve. Levantou antes da hora, cheio de ideias e disposição. A casa parecia mais arrumada e a manhã parecia pedir licença para entrar pela janela.
Sua mulher, sempre chata, velha e ranzinza se transformara numa moça enxuta, bem mais delicada e de tom de voz suave. A mudança era absurda! Ela era completamente outra e encantava os olhos do Velho de Aparência como a antiga jamais poderia.
Já os seus filhos quase o colocaram em desespero no primeiro contato de sobriedade. Cada um deles parecia ter envelhecido uns sete anos. Todos responsáveis, inteligentes, estudados... Já haviam passado a pequena cultura do velho pai. E o tempo todo necessário para esta transformação tão grande? Simplesmente não existiu. Um mistério que o Velho de Aparência não conseguiu desvendar.
Parecia que até então ele habitava outro mundo ou então que esta realidade tão limpa era um sonho.
Foi um dia de descobertas. Se deparou com as marcas da sua própria destruição sem entender bem que era o culpado. Sentiu novos cheiros, admirou novas cores e relembrou sentimentos antigos.
A vida por outros olhos, outra fotografia. Um mundo mais sereno, que mesmo com toda a macheza do Velho de Aparência, cultivada e fincada com orgulho, fez ele se derreter como uma criança apaixonada.
Parecia que enxergava pela primeira vez. Estava bêbado de alegria. Amava tudo e todos que por ele passavam e se sentia cada vez mais coerente, cada vez mais humano. Ouvia melodias e se deliciava com o som. Recitava poesias até para as árvores. Foi feliz e tornou belo tudo o que olhava... Até que o dia passou.

Passou o dia... A semana... O mês... E o cheiro da pinga continuava a atormentar. Mas o Velho se embriagava era com a vida de sóbrio. Gostava do sentido das coisas e tinha se apaixonado pela sua família. Quanto menos ele bebia, melhor parecia sua mulher e mais tempo duravam os filhos para crescer.
Mas nem tudo ia bem.
Os problemas voltaram a aparecer. Tanto os antigos, quanto novos, quanto os que ele plantou com seu bafo de cana. O Velho, de início, se desesperou. Como primeira opção, encarou a garrafa de pinga como um antigo troféu, prestes a ser reconquistado. Mas, antes que o pior pudesse acontecer, ele ouviu um burburinho... Algo mais forte que qualquer vício... Eram as risadas de seus filhos, de longe, quase sumindo.
O velho entendeu que nenhum mundo está isento de problemas, a grande diferença é que, agora, ele se sentia forte o suficiente para resolvê-los.
Depois de Velho, ele voltou a parecer jovem e finalmente aprendeu a viver.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Além da sociedade, a identidade.

Victor Rocha Nascimento

De tanto traduzir-te em medo,
Perdi a confiança que restava sobre mim.
De tanto insistir no incerto,
A certeza já viciou em contornar minha porta.
E a sociedade que me domina e dita meus modos já é culpada apenas por um quinhão da identidade que me afirma.
Sou eu, são os meus e é o meio que me fez ser assim. Tão inseguro e tão forte na dor.
Como a força exaustiva dos meus pulmões no dilatar de um ar tão frio que chega a aludir ao sólido, eu me forço a entender, a vibrar, a ser mais um e, ainda assim, ser eu mesmo.
Minha raça, minha crença, minha nação e até meu sexo. Ahhh, meu sexo. Que me obriga a atuar e a me impor. Ahhh, se eu pudesse esperar pela atitude delas, meninas, no lugar de reunir todo tipo de força para arrancar uma declaração. Ahhh se a história fosse diferente e as regras fossem outras. Tudo pura questão de sorte, de ocasião.
Essa sociedade que nos forma, nos domina e nos completa. Essa gente que se prende e se vicia nos preceitos das modinhas. Essa gente tapada que só vê o que lhes mostram pronto e não se dão ao trabalho de procurar novas vistas por si. Tantas cores no mundo e lhes resta, não sei se por opção, ficar trancados no comodismo e no tempo. No preto e branco.
Mas talvez seja esse o mundo real e eu esteja passando de suas arestas, de metido que sou. Talvez o erro seja meu em não limitar ao mastigado. Ainda que não acredite muito nisso, o "talvez" deve ser sempre levado em conta.
Ô mundo danado para se minimizar para uns e se agigantar para outros. Vai que existem vários mundos, e por certo que existem. Um para cada mente. Ou melhor... Creio eu, que cada mente é um mundo e nenhuma outra forma de mundo existe se não a própria mente.
Sendo assim, que me deixem em paz com a minha mente e cuidem das suas próprias. Na parte que ainda me resta do meu próprio mundo, prefiro ser eu mesmo, ainda que para isso deva ficar só e passar das arestas das sociedades e das modinhas.

sábado, 29 de agosto de 2009

“Humano, demasiado humano...”

Victor Rocha Nascimento

As vezes da vontade de pular fora ou sei lá.

É tanto conflito bobo, tanta birrinha, tanta palhaçada. Não sei se isso é para mim. As coisas são tão simples e parece que as pessoas se divertem complicando tudo.

Ok, pode ser soberba ou prepotência e eu tento não ser assim, mas têm horas que é foda aguentar.

Será que eu ainda não me achei, não achei meu grupinho? Será que é falta disso? Ou será que é só uma longa crise de mau humor?

Talvez eu esteja voltando à era das reflexões e, de tanto refletir, tudo passe a ser banal. Isso não deve ser muito bom para o meu social... Mas tanto faz também.

Daí vem a incomoda escolha de sempre entre a verdade e a felicidade. Seria melhor ser ignorante e feliz? Seria melhor me divertir, me magoar, me envolver com coisas idiotas só para me encaixar mais nesse mundinho?

Ai, ai... Que bosta de sentimento qualificador. É tão complicado encontrar bons amigos para conversar... Imagine então uma mulher para dividir a vida.

Melhor calar a boca e deixar tudo para lá. Qualquer hora isso passa e eu volto a ser eu. Ou não.

sábado, 22 de agosto de 2009

Menina esperta

Victor Rocha Nascimento

Pobre menina, que agora caminhava sozinha pela noite. Seus tamancos roçavam o asfalto molhado quebrando um silencio de quilômetros. Nas mãos um caniço velho, de pesca, e nas costas uma mochilinha com tudo o que dava para carregar.
Na cabeça, a menina levava as lembranças de uma família que já não existia e tentava encarar com força a vida que ainda lhe esperava.
A menos de um mês seu pai padecera de doença e nesta manhã sua vózinha nem levantara da cama para lhe servir o café. Não carecia ter mais de nove anos para entender que estava sozinha no mundo.
Cada arrasto do tamanquinho de madeira era um novo início, uma nova força que deixava para trás o desespero. Deixa, deixa... Deixa para lá o que passou, a vida está no que ainda vem.
Tão forte essa menina! E tão esperta!
Sabia , não sei como, que na vida as escolhas e os fatos são apenas caminhos para os momentos e que nada é eterno. Não existem fins se não em livros e filmes. Ela não deveria se iludir com um estilo de vida que tinha e muito menos esperar um final feliz. Apenas momentos. Momentos que são passageiros para o tempo mas infinitos nas mentes.
A menininha guardava seus momentos e esperava por outros, que certamente viriam. Recordava das comidas da avó, do afago do pai e da falta que fazia não conhecer a mãe.
Lembrava do dia em que a vózinha lhe deu um vestido branco com fitas azuis e num tecido suave como jamais havia sentido. Foi o unico vestido que teve até então e era o mesmo que a cobria agora, combinando com os tamanquinhos.
Ela lembrava de como ficava feliz quando o pai chegava do trabalho e havia vendido muitos peixes. Pelo brilho dos olhos cansados do seu velho, já sabia que a noite seria de festa e que comeriam bem no dia seguinte.
Maldita essa tal de amebíase que o levou. O médico não deu muita esperança, mas também não se esforçou para salvá-lo . Não da forma como faria a menininha. Claro, o médico não tinha tantos momentos com o pescador e a falta de lembranças cobria a importância afetiva do homem.
Com a avó, foi tudo tão rápido que a garota preferiu não esperar. Foi logo seguir sua vida e ver no que dava.
Esperar? O que poderia esperar? Não havia nada. No que se agarrar? E para que? A certeza é o triunfo temporário dos ignorantes. Que venham as descobertas! Que venham os momentos! Que venha a idade e venha a vida! Que venham os próximos passos.
A menininha arrastava seu tamanquinho barulhento de madeira pela madrugada escura, na procura de um mar.
A meninha ia pescar.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Prá moreninha entrar

Victor Rocha Nascimento

Roda, roda, morenhinha, que te gosto é por inteiro e que esse mundo todo abre as portas pra ver tua beleza entrar. Corre descalça pela terra e deixa as certezas pra lá. A vida só começa agora e está pronta pra te inundar.

Roda, minha morena, que na vida cê tem é que rebolar. Muda nada e tudo muda, e é só rodando que dá pra se encontrar. Sente o vento e canta as ruas, engole o mundo e aprende a dançar.

Rabisca mapas e faz turismo, anda sem rumo e acha o seu lugar.

Deixa que as pedras venham e brinca com elas, como de amarelinha, que é pro problema passar.

E quando tudo for só tristeza, e a vida cair em sentido, lembra que sempre terá alguem pra tê velar.

Mas corre, corre muito, que é pra lagrima secar.

Colhe histórias e cultiva amigos. Nem com o tempo a gente entende o valor que isso tem.

Entra com pose e graça nesse mundo que já tá pronto, mas que você vai ajudar a mudar. Vai com coragem e só olha pra trás se for pra se empolgar. Cante as vitórias e trague as derrotas até se embriagar. O mundo vem cheio de mentiras prontas, e cabe a você não se deixar enganar.

Roda, roda moreninha. Roda que a vida é feita pra amar. E se na roda cê ficar tonta, não se preocupa que o amor é mesmo um caminho pra gente sofrer, mas com graça tamanha que vale a pena retentar.


quinta-feira, 13 de agosto de 2009

E nada muda!

Victor Rocha Nascimento

Escrever num ataque te mau humor sem sentido da nisso:
(Não tentem em casa)


Nada muda.
Muda a voz. Muda a vida. A vida muda agora fala mas ainda assim ninguém escuta sua voz agúda.
Muda o mundo, o mundo gira. A vida passa nas voltas das rodas do mundo, mas é a mesma roda imunda que se vê na praça todo dia.
Mudam amigos, mudam cores, mudam idades, mudam amores. Mudam pais e filhos e mudo eu, muda você e nada muda.
Mudam idéias, mudam classes, mudam certezas e verdades. Mas a raridade não muda.
A mente muda, o homem muda e o destino muda, mas desde o início o fim é todo igual.
Muda o dia, muda a hora, muda a história e nada muda. É a mesma merda de sempre.
Muda o líder e o estado, o culto e o alienado, e as vadiagens do senado, e nada muda.
Não muda o choro, não muda o cheiro , não muda a dor e nem o desespero, ainda que mude tudo, tintim por tintim. Não mudam os gostos, nem os sonhos, nem a sede, nem a fome. Não muda o exagero.
Ainda que tudo mude, que todos mudem, que se emudeça o mundo, e ainda que o mundo fale, nada muda.
O velho muda o novo e é o velho quem mais muda, antes mesmo de se mudar; de encontrar uma caixa para se guardar. O Novo aprende e muda, e muda, e muda, e muda até virar o velho, até voltar ao início, até ser igual, e se muda, quando muda, é para poder imitar.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Mais hora, menos hora...

Victor Rocha Nascimento

-Tenho paciência e sei esperar. Mais hora, menos hora, a tua hora vai chegar - Dizia o relógio apertando o pulso do jovem rapaz, quase fundindo rádio e ulna. Contraia as artérias, impedia o fluir do sangue e parecia anunciar um leve esmigalhar de ossos.


-Ora, quem é você para dizer ou desdizer qualquer coisa? Não passa de um relógio! Nada além de uma ferramenta criada para me servir. -Retrucava o jovem, apoiado no vigor da idade e caminhando longe das responsabilidades. - A minha vida está só no começo e vai demorar muito para encontrar um fim.


-Não poderia concordar com tal afirmação, tão pouco juizada. Como deve ter esquecido, não sou, tão somente, um simples objeto de faxada. Não me limito ao metal dos ponteiros nem à tinta dos números, muito menos à atadura emborrachada que te aperta e prende. Sou o próprio Cronos, sei o que fez e o que pretende. Sou rei do que era e do que será. Mando na leveza da gravidade ao empurrar o suicidado no concreto e da mesma forma mando que a gravidade seja forte parar assegurar que a beleza da folha custe a tocar o piso, sendo assim, melhor admirada. Eu faço o novo se tornar velho e o dia ser de sol ou chuva. Sou eu quem dita as regras e tu te limitas a subordinar, sem direito a retrucas.


-Agora é o senhor, digníssimo rei, que se apressa ao falar. Não sabe, pois, que foi o homem autor do tempo e que como seu criador se torna também seu mestre? Se quisermos podemos decidir viver como hippies anarquistas e o tempo de nada nos servirá.


-Se equivoca falando nisso, meu caro. O homem não tem controle do nascer do sol e nem da lua, tão pouco da vida, ou da morte. Logo, não controla o tempo e muito menos é seu fundador. Por sorte! O Tempo é criação única e exclusiva de Deus e apenas Ele, se assim desejar, pode intervir. Caso outro, eu comando e nada podes fazer, se não te acomodar.


-Se falamos nas leis de Deus, ao homem é dada a possibilidade da vida eterna. Como pode ver, seus argumentos apenas ajudam a minimizar sua própria importância, caro Cronos. Deve tomar mais cuidado com a possível pena de meter os pés pelas mãos, com tanta petulância. Se o próprio tempo é temporário, o senhor não tem controle nem de si mesmo. De nada serve, beira a inexistência, o desuso. Todo poder que pensa que tem é só o que nós lhe dignamos ao bel prazer, coisa pouca.


-Vejamos então, na verdade dolorida dos dias, quem é o senhor da nossa relação. Criação e criador pouco importam. Quem manda e quem obedece só se sabe ao observar a prática. Posso eu, muito bem, não ter o poder que digo, nem o que penso ter, mas não podes escapar de minhas prenuncias, e as certezas e verdades absolutas que te rogo vão com júbilo te corromper. No mais, não ligo. Tenho paciência e sei esperar. O tempo vai passar e tu nem vais ver. Em meio aos atrasos, aos encontros, às mudanças, aos cronogramas e horários, sempre vou estar observando, rindo e lembrando. Mais hora, menos hora, a tua hora vai chegar. Pois bem, deixe para lá, já que até a finada hora, te resta apenas aproveitar.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

O mais batido de todos

Victor Rocha Nascimento

Tenho que confessar que não é um assunto que me anima muito. Falar do amor e tentar explicar já é tão banal, tão comum, que não vejo mais grande utilidade nisso, sobretudo para um ultraromântico assumido como eu. Mas, pelo andar das coisas, acho que se um dia vou ter que falar disso, é melhor falar agora, que estou privado de qualquer tipo de influencia. Pois é, estranhamente, não estou apaixonado. Ah, e mais estranho ainda... Não sei se quero ou não estar (o normal seria não querer).
Digamos que me vejo mais lúcido agora que não tenho ninguém que me anime muito e nem mesmo que me encha os olhos (ando mais carnal que nunca) e, pelo que me conheço, é melhor aproveitar logo o momento. Sendo o caso outro, tantos já se dedicaram a falar de seus amores e seus sentimentos, e já falaram tão bem, tão melhor do que eu poderia e ainda assim não puderam se comparar com o real sentimento, que eu não me atreveria a tentar.

Pois bem, estando em um momento incomum, talvez valha a pena. Não sei bem do que falar... Mas deve ser uma coisa entre um estudo frio e uma recordação carinhosa do que já passei.
Por um tempo, cansado de sofrer por garotas que mal sabiam meu nome, ou que achavam melhor me chamar "amigo", e essas coisas que todos nós já passamos, imaginei essa história de amor como uma doença, um vício, e me orgulhava de falar muito mal dele para todo mundo que passava, na procura ingênua de um remédio. Uma coisa sem sentido que de uma hora para a outra agarra na gente e que temos que tentar nos curar. Pois é, acho que esta idéia não era errada em sua totalidade (Ironia ter, nesta época exata, encontrado o maior amor que já sentir e ser correspondido por algum tempo).
Não sei bem o que faz essa loucura toda começar. Alguma afinidade, uma necessidade, uma esperança... De algum ponto parte e, depois, resta à nossa própria carência completar o fado. Não há outro sentido ou explicação. Somos tão frágeis, carentes e sonhadores que depositamos de uma vez, em uma só pessoa, tudo o que esperamos para nossas vidas. Partindo disso nos decepcionamos constantemente, o que não poderia ser diferente. Ninguém jamais poderia ser tão perfeito quanto desejamos, como podemos imaginar e como dizemos aos ventos em nossas paixões.

Ah, não vou me embolar ao tentar explicar o que penso de amor e paixão, apenas que são coisas muito distintas mas que compartilham suas bases. A paixão ocorre de forma infinitamente mais regular do que o amor. O amor é um apego absurdo e sem fundamento onde você deveras pensa mais na outra pessoa do que em você mesmo, é o bem querer puro e divino. Já a paixão é coisa totalmente egoísta, igualmente sem grandes fundamentos, onde se acredita que a pessoa tem que ser sua e ponto, ainda que o infectado por ela (paixão) não possa notar isso, o que é outro sintoma.

O amor faz falta. E acho que só agora, de cabeça fria, posso notar isso. Parece que se tem muito a oferecer e ninguém para receber. Todo um potencial desperdiçado. Falo por mim... O que é um ultraromântico sem um amor? Sem um referencial? Nada.
Então posso falar de boca cheia que as lamúrias do amor são bobagem. Só se reclama do amor por estar totalmente infantilizado e mimado pelo mesmo, um outro sintoma (dá para fazer uma lista). "Oh, como eu queria não estar apaixonado". Besteira. Nada é melhor do que estar apaixonado, mas com isso vem o problema de nunca poder ser correspondido da mesma maneira. Sejamos lógicos, isso é absurdamente improvável, mas é melhor não ficar achando impossível. Comparado ao que se sente, é um problema mínimo.

Na faculdade eu aprendi que o amor não passa de um mito. "O mais belo dos mitos já criados" segundo o professor. E para falar a verdade, faz muita lógica, e eu acredito fielmente nisso, o que é muito fácil. Me falta sentir. Mas também, se mito ou não, não faz a mínima diferença. Que graça tem não levar o amor a sério? Mais uma ironia: Agora que estou 'curado' (temporariamente, creio), não sei mais se é tão ruim estar doente.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Quando chega o fim

Victor Rocha Nascimento

A mulher acordou já pouco disposta a olhar para o lado. Suspirou profundamente como se isso ajudasse a tornar as cosias melhores e pulou da cama empurrada por uma injeção de animo falso. Logo foi barrada pela tonteira. Se arrumou calmamente lutando para que o tempo não passasse e o dia custasse a começar. Mas, como sempre, quando mais ela enrolava, mais o dia passava e era melhor ser rápida.
Saiu do banho e abriu o armário. Dentro dele, recordações que costumavam ajudar em tempos como esse. Mas dessa vez era diferente. Não havia briga, nem ciumeiras e nem uma leve insegurança. Era diferente de tudo.
Ao lado das roupas de sempre, o velho namorado, bem no fundinho do armário com cheiro de guardado. Este dera lugar a um marido, também já desgastado cheirando podre, usado além de conta. sem graça. O cheiro nauseante irritava, quase sem sentido.

O marido levantou sozinho, o que já não fazia diferença. Escutou os rangidos da mulher no banheiro e repensou se deveria mesmo levantar. Empurrado pela obrigação ele se jogou da cama e tentou se aprontar logo, como se isso ajudasse a fazer com que os momentos desconcertáveis passassem mais rapidamente. Fazer com que sua existência fosse o máximo passageira.
Sentiu a mulher mais próxima, com seu perfume de passado, o que ainda lhe remetia a uma velha infância boa e enjoativa. Parecia certo que o passado deveria estar preso no pretérito, mas que o importunava sempre no presente e não se restringia às lembranças.
Não houvera briga, nem motivo algum. Partira de uma falta de desejo duradoura, que nada tinha a ver com as outras. Tão pouco era causada pelas marcas do tempo em suas peles, resultando num flagelo à beleza da mulher. Era diferente. Algo sem explicação. Coisa rara.

Na correria matinal (ou fuga, como preferir), por um segundo, se esbarraram. Fitaram seus corpos inteiros rapidamente até que os olhos puderam se encontrar.
Algumas lágrimas pareciam surgir, mas recuavam na medida em que não sabiam se brotariam por dor ou felicidade. Algo tão inexplicável quanto o amor, que os dois por anos sentiram, estava acontecendo, mas era diferente.

Misticismo? Genes? Hormônios?
Não existem culpados, não existem regras, apenas a sorte de acontecer simultaneamente para os dois. O que ainda me atrevo a dizer que é mais raro do que o nascimento de um amor verdadeiro e recíproco numa primeira vista. A reciprocidade do momento era coisa mais rara, e os anos de convivência ajudaram as ex-almas gêmeas a entender tudo isso num breve olhar.
Talvez não haja mais nada que possa unir tristeza e felicidade assim, desta forma tão plena e simultânea. É a morte ligada a um novo nascimento. É a liberdade vomitada para fora de casa. É como o filho que se torna homem, ou a corrupção das certezas frente as descobertas.
Mais uma relação havia terminado. Outro amor acabara de morrer.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Exatamente como outra qualquer

Victor Rocha Nascimento

Era uma noite como outra qualquer. Lá fora, o mundo caótico das incertezas e a guerra diária pela soma da vida. Eu estava em meu escritório, seguro, porém mais próximo da guerra do que poderia aparentar. Meu emprego estava na incerteza de um bom texto.
Um inverno tenebroso soprava, empurrando minha persiana, o que resultava em um barulho absurdamente irritante e me impossibilitava o bom uso do pensamento. Eu estava trabalhando até mais tarde, com a certeza de que nada me incomodaria naquele início de madrugada a não ser minha própria incompetência. Mas foi neste momento, o menos esperado, que ela apareceu, entrando de forma avassaladora em minha sala.

Linda e conquistadora, com uma sedução quase profissional, daquelas que só se tem com muita prática. Andava com uma volúpia estonteante no corpo e um convite ao pecado nos lábios.
Ela me vinha com soluções, e não com problemas. Mais uma coisa a qual tive que me render e admirar. Não é sempre que invadem seu recinto para presenteá-lo com notícias boas.
Boas? Quem sabe? De pessoas assim, não se pode esperar nada.

Ainda que a tentação me corroesse, me mantive firme, tentei lutar. Mas no momento eu estava tão fraco... O peso do mundo havia pairado sobre mim e a inspiração me abandonado a tempos. Restava a obrigação da manhã e as malditas persianas chicoteando a parede.
Eu era um universo de problemas e ela me parecia tão bela, e vinha com tantas respostas.

Há de se entender. Em um momento de total nervosismo e desespero, recorremos às atitudes mais loucas, sem pensar nas consequências que poderão acarretar. Basta escolher e sentir o breve alívio da solução.
As soluções são drogas e todos somos viciados nelas. O estresse é a abstinência.
Pessoas de carne, osso e coração me entenderiam. As leis não.
Mas de que importam as leis que duram anos de incertezas comparadas ao pão de amanhã?

Me faltava inspiração. Me faltava um texto para dali a algumas horas. E ela parada na minha frente, me oferecendo uma saída. E como ela era linda, sedutora. Me fazia respirar ao prender a respiração. Tornava a noite mais quente, tornava certo o errado, me tornava dependente e mais frágil enquanto eu não conseguia desgrudar olhos e mente de sua beleza.

Finalmente, antes de decidir aceitar a ajuda, lavei a cara, dei um ultimo gole de café e perguntei seu nome.
Ela respondeu: "Me chamam de Plágio".

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Designação Póstuma

Victor Rocha Nascimento

-Droga, mas que sol é esse?

-Que sol?

- Este que não me deixa descansar em paz! Está rasgando todas as brechas e me acertando nos olhos.

-É verdade. Acabo de notar. Gente porca e tosca. Não conseguem nem deixar um pobre defunto descansar. Não só pelo sol que te acordou. Não conseguem parar de falar e chorar e cochichar. E o pior dos tantos cochichos é que daqui não consigo ouvir nenhum.

-Nossa, é verdade. Havia me esquecido que estava morto. Se não fosse você eu levaria horas para lembrar... Não sinto nada, como em um sonho e, no entanto, tudo parece tão pleno e real. É como uma manhã de sábado, onde o sono é mais forte do que a curiosidade dos olhos.

Mas, afinal... Quem é você?

-Que pergunta idiota. Você está morto. Não pode mais falar, apenas pensa. Logo, se está pensando e eu escutando, e respondendo... Eu sou você. Estamos discutindo sozinhos. Você com você mesmo, eu comigo mesmo... Nós dois. Somos parte de uma reflexão solitária... Idéias rebatendo idéias e chegando a conclusões lógicas. Um monólogo dos mais originais. Não passamos da mesma coisa em questão, nada mais, nada menos.

-Interessante. E pensando bem, tem lógica. Claro, claro... Se é que você sou eu, acho não devo dever discutir, ou acabaria caindo em contradição. Melhor acreditar que estou certo, como sempre se faz. Não quero me tornar louco logo agora. Depois de tudo que passei nessa vida, ou melhor, naquela vida, seria um tremendo pesar virar maluco depois de morto.

-Se é assim, já está louco. A única forma dessa conversa chegar a algum lugar é com contradições, e já falei a respeito disso. As idéias têm que entrar em conflito para que haja alguma evolução no pensamento... Se não fosse por isso, eu não deveria estar aqui. Não existiria. Mas pode ficar tranqüilo. Gosto muito de minha existência e se não vierem de você, as idéias opostas partirão sempre de mim.

-Tem razão, deve estar mesmo certo. Acho que o fato de morrer e não ter como falar com ninguém, além de comigo mesmo, me deixou assim, pensativo demais. Vou parar de pensar tanto e deixar a conversa rolar. Ainda que a conversa toda seja puro pensamento reflexivo. Não sei mesmo como vai ser daqui para frente. Vai que tenho que passar a eternidade toda falando comigo mesmo, ou com você. Tenho que estar disposto a encarar isso. Talvez a própria loucura seja o melhor consolo para um pobre defunto como eu.

-Ora, ora, agora quem me atrapalha é você... Pare de pensar tão alto e ainda mais essas reflexões vãs. Quero tentar escutar o que estão falando. É complicado saber quem veio ao meu velório com algodões nos ouvidos e olhos fechados. Maldito seja aquele que me cobriu os olhos!

-É verdade. Não me atentei para isso. Meu velório! Dizem que é o único momento em que se pode descobrir os amigos de verdade. Quem realmente se importava com você.

Vai dar para ter uma idéia. Se estiver cheio, posso ter a certeza de que em vida, tive muitos amigos de verdade. Tenho que aproveitar ao máximo essa oportunidade. Todos dariam tudo para ver seu próprio velório!

-E você realmente acredita nisso?

-Como assim?

-Será que tenho que explicar tudo? Em primeiro lugar, ninguém daria muito para ver o próprio velório, já que para isso a pessoa teria que morrer e... Não acredito que apostariam a própria vida por essa chance. Tudo bem, talvez você o fizesse, mas... Ah, é melhor não o insultar, pois eu mesmo poderia ficar mal com isso.

-Tem razão! É melhor não insultar... E acho que isso não vai ser necessário, já que não paro de me contradizer.

É bom ter você por aqui, ou eu mesmo. Pelo menos fico seguro em minhas tolices tendo você para ponderá-las. Mas o que vem em segundo lugar?

-Bem, em segundo lugar... Pelo que estou notando... E se você ficar quieto e atendo também irá notar... Nosso velório não é dos melhores.

-Mas ele está cheio! Só do barulho e dos choros e dos cochichos já posso me animar.

-Não importa quantidade, meu caro. Veja bem. A maioria das vozes é desconhecida. São poucos os choros realmente sofridos e os cochichos não passam de fofocas maldosas.

-Pensando bem, tem razão. Você realmente abre meus olhos! Nada como pensar bem nas coisas antes de chegar a uma conclusão imutável! Mais da metade das pessoas que veio me ver, se quer me conheceram. Alguns parentes próximo e alguns que por pouco não desconheço. Lembro vagamente das vozes e do jeito de falar, mas o suficiente para saber que vieram apenas para fazer média com o resto da família. Talvez para que em seus próprios velórios, todos também compareçam. Tenho sorte por minha esposa estar aqui, e pelo que posso notar, está deveras aflita. Porém com muitos amigos meus prontos para ‘consolá-la’. Amigos da onça, isso sim!

Uma observação... O consolo ao qual me referi era puramente sarcástico. Eles estão querendo se aproveitar da fragilidade de Ritinha e...

-Tudo bem, tudo bem... Lá vem você com essas bobagens. Eu notei seu tom sarcástico, e mesmo que não notasse, eu estou bem próximo das suas idéias para saber ao que você se refere. Mas veja por outro lado. Eles podem não estar aqui por nós, mas pelo que conhecemos de alguns deles, se Ritinha escolher direito, pode se dar muito bem.

-Pelo que conhecemos dela, não vai escolher assim, de primeira. Vai levar pelo menos alguns anos de luto... Isso se não preferir passar a vida toda sozinha.

-“Conhecemos dela?” Como assim? Não temos como ter certeza de nada a respeito dela. Tudo bem, cinco longos anos de amor, felicidade e rugas. Mas nunca se pode estar certo sobre as idéias mais imas de uma pessoa, e nem mesmo sobre seus segredos. Nós trabalhávamos muito... E ela ficava muito tempo sozinha... O que não vem ao caso.

- Mas você mesmo falou sobre o quanto conhecemos nossos amigos. Vai mudar de idéia falando de Ritinha? Não vá se contradizer sozinho, ou teremos uma terceira companhia.

-Não, não estou a fim de mais um para me atrapalhar, tornaria tudo muito confuso! Além de ser possivelmente outro tagarela e não me deixar ouvir as fofocas do meu próprio funeral.

Vamos lá, preste a atenção. Amigos são amigos... Amigos são homens. Os conhecemos bem, sabemos suas limitações e suas capacidades, até mesmo para a traição. Agora... A Ritinha é uma mulher. Delas sim, não se pode esperar nada.

-Pode estar certo, até porque é comum para nós, homens, estar sempre aflitos e refletindo a respeito da fidelidade e do caráter de nossas mulheres... Mas não quero pensar nisso e me torturar agora que já estou morto. Passou da hora de me aventurar com esse tipo de pensamento, isso é coisa para quem fica. Tenho que resolver logo o melhor para minha família, já que não sei o tempo que me resta aqui, nesta lucidez. Vejamos então... Existem três boas oportunidades. São homens pintosos, elegantes e grandes amigos! Todos sempre foram apaixonados pela Ritinha... Mas foi comigo que ela ficou.

-Sim, ela nos preferiu passando por cima de todos esses partidões. Fomos o homem mais feliz do mundo enquanto durou, mas acho que é chegada a hora de passar o bastão. Vamos analisar bem as características de cada um. Escolheremos o melhor para Ritinha e, por fim... É... Por fim, o que faremos?

-Isso não importa... Assombraremos, incorporaremos, ou, no mínimo, ficamos na torcida. Ainda assim, creio que ter morrido tem suas vantagens e que alguma coisa vou poder fazer para ajudar a Ritinha nesse momento tão difícil. Não é possível que não possa! Seria uma pós-vida muito limitada, muito triste! De alguma forma, vou interferir.

-Se é o que pensa, então vamos logo recordar os fatos e nos preparar para essa difícil escolha. E agora sim, teremos que chamar um terceiro para nos contar tudo bem direitinho, e possamos analisar com calma os fatos. Uma terceira parte de nós, que até o dado momento estava apenas sussurrando algumas coisas em meio a nossa discussão, mas que agora poderá falar a vontade, e ficaremos quietos para escutar. Pois bem, que fale a Memória!

***

Éramos quatro grandes amigos. Eu sempre fui o mais feio, mas a Ritinha não se importou com isso. Olhou-me com os olhos do coração.

Foi no Baile de formatura... Durante anos, nós quatro sonhávamos com sua beleza e doçura, mas as mesmas beleza e doçura fizeram com que nunca conseguíssemos chegar muito perto dela. Nem eu, que sempre fui um típico covarde; nem Júlio, corajoso, mas viciado demais em seu platonicismo poético para abordá-la; nem David, ainda que com sua postura sempre rígida e galanteadora; e nem mesmo Valentim, sempre tão seguro, forte e inteligente.

A verdade é que nós quatro vivíamos com a típica tristeza poética dos adolescentes platônicos, se é que “adolescente” e “platônico” não exprimem uma redundância. Em fim... Foi necessário que ela tivesse a incitativa. Foi pouco depois da entrega dos canudos, já no baile.

A Festa explodia em bebidas e garotas. Nós, como bons jovens no início da vida sexual, não conseguíamos controlar nossos hormônios. A cada rostinho, a cada olhar, a cada corpo, a cada dança colada, nos apaixonávamos por uma garota diferente. Ainda assim, nossos corações eram muito bem direcionados, e todo corpo ou tentação se tornava mínima perto da grandeza de Ritinha. Ela era tudo que qualquer garoto, jovem ou homem sonharia. Linda, escultural, inteligente, doce, meiga, respeitadora e um pouco tímida, o suficiente para formar sua cativa misteriosidade. Ah, bons tempos.

Ela se aprontou como rainha para a festa. Um vestido branco, longo, luvas de seda, lápis nos olhos e brilho nos cabelos. Estava divina, como eu, Júlio, David e Valentim jamais tínhamos visto, mas como sempre imaginávamos em nossos sonhos mais afortunados.

E foi desse jeito que ela veio até mim. Chamou-me para dançar, me fez beber, ludibriou minha timidez e aí, conseguiu me roubar um beijo. Um beijo roubado que eu daria de graça, com toda certeza, ou até mesmo pagaria para que ela me roubasse. Ah, Na época eu pagaria para que ela me tirasse o que bem entendesse... E foi mais ou menos isso o que aconteceu depois da festa, na casa de David.

Os pais dele tinham viajado... Gente rica é assim mesmo, acham que esses momentos são bobagens e não ligaram muito para o fato do filho estar se formando. Para eles a festa verdadeira veio antes, com as notas brilhantes de David. Mas nem ele e nem seus pais têm a ver com isso. O que importava agora era uma casa gigantesca, com vários quartos confortáveis, onde vários formandos bêbados passariam a noite. Entre eles, eu e Ritinha. E não poderia ser uma noite melhor. Passamos a madrugada juntos. Ou o fim dela. Foi a primeira vez de Ritinha e ela receou a ir para o quarto reservado para nós, mas depois que tomou coragem... A primeira vez dela foi aos meus braços. Não poderia haver privilégio maior. Depois o namoro, o noivado, o casamento e... Até a morte. Ela nunca teve outro homem... O que torna a tarefa ainda mais difícil.

Sim, estávamos os quatro na casa de David. E ainda hoje sinto a inveja deles me cutucando por meu triunfo, mas não posso culpá-los, eu estaria do mesmo jeito.

Pobre David, sem saber direito, nos presenteou com nosso ninho do amor, nos fez selar para sempre nosso romance, que mais puro e belo nunca houve, e talvez nunca haverá neste mundo.

David era assim, e continua sendo. Rico, inteligente e determinado. Talvez um pouco frio... Quanto mais se aproximava à idade dos pais, mais parecido com eles ficava.

-É verdade. Com ele, Ritinha teria vida fácil, muito menos problemas do que conosco ou com qualquer outro. Ela teria de tudo e seria bem cuidada até o fim da vida.

-Pode ser, mas ele é um tanto egoísta e profissional de mais. Não sei mais se continua gostando dela como quando garotos ou se agora apenas quer uma mulher bonita e educada para apresentar em seus jantares chiques.

-Então, vamos analisar o próximo.

Júlio era talvez o mais romântico. Nisso, era muito parecido com Ritinha. Posso ver os dois juntos, se divertindo, brincando... E, como sempre falava Júlio, com uma multidão de filhos. Era o sonho dele. Casar com Ritinha e ter uma vasta prole. Um mais belo que o outro. Ele fazia questão de pensar na felicidade das crianças e, sendo assim, não queria ser o culpado pela tristeza da feiúra de nenhum. Seu dever era não só encontrar uma mulher bonita, como também que tivesse um físico similar ao seu, para ocorrer uma ‘boa combinação de genes’. Sempre apontava Ritinha como perfeita para o papel.

Muito romântico, apesar disso. Sempre foi um sonhador, um poeta, constantemente feliz e esperançoso com o futuro, mas... Pobre. Entre os amigos sempre falamos que ele vivia mais dos sonhos que da realidade. Passou a beber muito e tivemos que sustenta-lo algumas vezes. Ajudar em suas dívidas. Não é má pessoa, mas com o tempo foi tomado pelos vícios e caiu na pobreza. Um tipo aventureiro, desses que sonha com uma família, mas nunca daria certo em uma.

-Pois bem, Júlio é o oposto extremo de David. Também não daria certo. Numa relação, basta um sonhador. Como ele poderia sustentar uma mulher e tantos filhos se não é capaz nem de sustentar seus próprios vícios?

-Se formos olhar para o passado, quando dependíamos de nossos pais e de nossas próprias descobertas para formarmos nossa identidade, ele seria perfeito. Mas hoje, não daria certo. Ele continuou um sonhador, mas agora sem ter quem sustente seus sonhos. Talvez um dia lance um livro, seja muito rico, famoso... Mas não podemos contar com isso. É da felicidade da doce Ritinha que estamos falando.

-Bem, então vamos ao ultimo. Valentim deve ser um meio termo. Talvez seja nossa resposta.

Valentim sempre foi independente. Apesar de mulherengo, era forte, trabalhador, honesto, digno... Entre os quatro amigos, era sempre como um líder. Inventava planos mirabolantes de diversão perigosa e, no fim, sempre conseguia livrar a cara de todos nós. Isso quando não assumia a culpa de tudo sozinho. Coisa de moleques. Ao envelhecer se tornou empresário. Nada que lhe fizesse rico, mas teve uma vida confortável. Todos o admiravam e o admiram até hoje. Todos querem ser iguais a ele ou então ser o próprio. Ser tudo o que ele é e ter tudo o que conquistou. A única coisa que ele nunca teve foi Ritinha. Mas fora isso... Uma vida perfeita. Pôde se casar, e viver bem com sua mulher e três filhos.

-Espera! É verdade! Ele é perfeito... Tão perfeito que já é casado, com uma mulher linda e tem uma família linda.

-Por certo que sim, mas sabemos que possivelmente ele trocaria a família por Ritinha.

-Tem razão. Mas não quero esta vida para Rita. Seriam muitos problemas, muita complicação. E talvez... talvez Valentim já seja feliz o suficiente, e ao trocar tudo por Ritinha, note o tanto que perdeu e queria voltar atrás. Não daria certo. Seria só mais um motivo de sofrimento para ela.

-Sem contar que sabemos muito bem como Valentim é. Ele não consegue se prender a uma mulher só. Neste ponto tenho pena da coitada que se casou com ele, e não desejaria isso para Ritinha.

-Tudo certo, Valentim também está fora.

-Então, entre os três... Nenhum daria certo?

-Talvez estejamos vendo problemas demais neles. Talvez seja só uma crise de ciúmes nossa. Talvez, quem sabe... Ela mesma deva escolher, sem interferência nossa. E... Talvez nenhum dos três. Nem sabemos se temos como interferir, mesmo.

-Mas que bobagem. Cuidamos dela por longos anos, e agora, se pudermos fazer alguma coisa para saber que ela vai estar em boas mãos, será feio!

-Está certo. Vamos trabalhar para isso então!

-Espera um pouco...

Está ouvindo?

Estávamos nos movendo. Acho que estavam carregando o caixão. E agora... Tudo é silencio.

-Deve estar certo. A luz do sol se foi, agora já dá até para dormir.

-E você quer dormir agora? Ainda não terminamos nosso papel nesse mundo. Temos que encontrar um bom partido para Ritinha. Um ser tão perfeito não pode ser jogado aos sete ventos assim. Temos que cuidar para que tudo fique em ordem.

-Ouviu isso? É o padre... Acho que estamos prestes a ser enterrados.

-Droga. Então vamos agir logo. Temos que decidir com quem Ritinha deve ficar.

-Acho que não temos mais tempo.

-Temos que ter. Não pode acabar assim. Tem que haver uma resposta. Tem que haver!

Não pode ser! Temos que poder fazer alguma coisa por ela.

É tão frágil e pequenina. Doce e linda. Ainda como no dia do baile.

Ela não vai conseguir enfrentar esse mundo, sozinha.

Não pode acabar assim.

-Acabou tudo. O que será que vem agora?

***

Silencio.

-Está ouvido? São passos arrastados na terra fofa... Alguém se aproxima...

- Mas pensei que já havia acabado tudo...

-Meu amor...

-É ela, a Ritinha! Fica quieto, vamos ouvir!

Meu amor...

Você se foi, e nem tivemos tempo de comprar a nova casa. De ter os filhos tão esperados. De realizar todos nossos sonhos. De viver as aventuras da velhice juntos, e ver a vida passar com calma. É verdade, não existe essa história de “felizes para sempre”. Um dia, quando menos esperamos, tudo acaba. Tudo perde a cor, tudo fica sem graça. Mas acho que não posso deixar isso me afetar tanto. Até por respeito a você, tenho que aproveitar a vida que me resta.

Por tanto tempo eu me diverti com você... Você me sustentava, me amava, me dava carinho e cuidava de mim. E ainda hoje, depois de ter indo embora, continua cuidado de mim e pensando em mim. Deixou tudo preparado antes de partir.

Mesmo depois de morto, você ainda deixou seus três melhores amigos para cuidar de mim.

-O que? Mas será então que...

-Eu não disse? Alguma cosia podemos fazer! Deve ser a força do amor. Ela pode nos escutar e...

-Shhhhh!

Pude notar hoje que mesmo com sua ida, eles não irão me abandonar. São pessoas maravilhosas, confesso. E acredito que não vai haver nenhum problema maior em lidar com eles.

Desde antes, mesmo sem saber, eu me preparei para esse dia. Você trabalhava muito, ganhava pouco... E eu, com o tempo livre... Encontrava neles o que me faltava em casa. Você nunca soube, e eu prezava este segredo por você. Sempre por você. Creio que não gostaria de saber disso, mas acho que agora não deve mais se importar.

Eu sei que não era sua intenção, nem o culpo por nada. Mas minhas tardes eram muito solitárias e seus amigos se faziam sempre presentes...

Você não imagina como era bom poder passar horas conversando com Júlio. Tínhamos tudo a ver. Falávamos sobre as mesmas coisas, nos entendíamos muito bem e... Ele era magnífico na cama. Sabia como tratar uma mulher, com todas suas necessidades e desejos.

Já Valentim, era fantástico! Conseguia arrumar tempo para mim e para sua própria família, sem que nem a mulher dele e nem mesmo você notassem. Você tinha razão quando falava sobre as virtudes de Valentim, pude provar de quase todas. Você teve muita sorte de ter amigos assim. Um homem tão charmoso como ele, dono da própria empresa... Acho que por ser chefe, tinha tempo para tudo isso. Enquanto você... Tinha que ficar fora o dia todo. Nada contra, meu amor, mas todas aquelas tardes, sozinhas, sem ter o que fazer... E propostas como a de Valentim... Convenhamos que era impossível recusar.

Com David a história era diferente. Não me atraia muito o jeito dele. Era frio, muito ruim na cama, pensava muito mais nele do que no resto. Mas como eu conseguiria, por exemplo, este vestido lindo que estou usando agora se não fosse por ele?

É verdade. Estou certa de que os três vão cuidar muito bem de mim, como sempre fizeram. Mas é claro que vou sentir sua falta, de todos você era o mais importante, o melhor. O único defeito em nosso casamento era ter tão pouco tempo para nós dois. Nada que não pudesse ser suprido. Eu sei que não foi culpa sua.

Foi por isso, por ser o melhor que escolhi você na formatura. Entre os quatro, você.

Confesso ter sido um pouco calculista ao embebedar todos vocês e ficar com cada um de uma vez para decidir o melhor. E depois, na casa de Devid, descobrir o mais intimo de cada um, na cama.

David foi o primeiro, claro, estávamos na casa dele... Como você estava no quarto mais distante, acabou sendo o ultimo. Acho que foi azar... Mas, em fim.

Importa que com tudo isso, você foi o escolhido. Você foi o melhor no conjunto e não me arrependo de ter ficado com você. Até porque, eu mal sabia que ficando com você, teria as virtudes de cada um quando eu bem quisesse.

Nossa! Não faz idéia de como falar tudo isso agora me faz bem. Me sinto bem melhor. Se eu tinha alguma culpa da sua inocência, antes, agora se foi. E nem sei se você pode mesmo me ouvir. Que loucura!

Ah, foi bom enquanto durou. Muito bom. Não poderia esperar vida melhor.

Nunca mais será a mesma coisa. Sinto sua falta.

Até algum dia, meu amor, mas... Que esse dia custe a chegar.

Silencio.

-Mas que filha da...

-Pode parar, não devemos falar coisas desse tipo. Não agora. Logo agora que já morremos.

-Desgraçada. Se eu não estivesse morto, eu iria... iria...

-Iria o que?

***

-Ritinha, acorde! Acorde! Deixe de ser mole!

-Acordar? Agora? Mas por quê? Droga! É cedo.

Que choradeira é essa que não me deixa dormir?

-É o seu velório. Com o tempo vai se acostumar.

-O que? Eu morri? Mas... Não me lembro bem...

Eu...

É verdade!

Eu me lembro... Mas foi tudo tão rápido. Se você não me falasse, eu levaria horas para lembrar. Eu estava saindo do cemitério e... De repente... Um tropeço, um escorregão, não sei bem... Um caminhão e... Ai que dor de cabeça! Não entendo muito bem como foi acontecer.

Mas, se eu estou mesmo morta, então quem é você?

-Rá, rá, rá... Pois é, eu disse que poderia interferir em alguma coisa. Estar morto tem suas vantagens.