quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Daltonismo Amoroso

Victor Rocha Nascimento

O que faz um desgraçado romântico quando descobre que o amor não existe? Quem estuda a natureza humana excessivamente acaba fragmentado na realidade absurda do mais puro e físico das coisas. Quem conhece bem uma árvore passa a se questionar sobre os motivos e fundamentos do amor.
Me perguntava sobre o que era esse sentimento terrível que me incomodava agora por faltar e tentava entendê-lo da forma mais mecânica possível. Não havia dúvidas de que era um mito, uma invenção do homem... Mas que fosse o mais útil, belo e honroso dos mitos também.
Perdido, parei de me perguntar e tornei a preocupação pública. Daí ela me respondeu, mesmo a par da complexidade real da minha aflição:
- O problema é que a intensidade que as vezes a gente busca não é a mesma que a gente espera (recebe?)... é como uma escala de cores!
- Se por isso, meu amor é tipo um Flicts.
- Flicts?
- Sim. Do Ziraldo. "Flicts é uma cor de que ninguém gosta, ninguém lê, da qual ninguém lembra", mas no final, de forma completamente irônica, a Lua é Flicts.
- Ah! É verdade. Já me lembrei.
- Você sabe o que a Lua representa pra mim, apesar de tudo...
- Será que então você sofre daltonismo amoroso?

A conclusão me pareceu tão fantástica que preferi acreditar que sim. Ainda não tenho respostas exatas para o que é o amor e muito menos sobre o meu papel com ele. Tento curtir da maneira mais pura e só. Depois de tantos procurarem definir das formas mais intensas e criativas, eu não deveria me atrever, mas faço por uma inquietude própria, faceira. Talvez isso seja parte do que definem como estar amando.
Se mito do homem ou graça de Deus, não importa tanto. De uma maneira ou de outra, estou seguro e satisfeito nessa constante utopia comum, que consegue ser tão física quanto ilusória, encantando qualquer alma cética.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Na espera fracionada o inevitável encharcado.

Victor Rocha Nascimento

Quando chegou em casa, passou primeiro pelo cheiro. Já envenenado de odor, tomou ciência de que ela estava no quarto como quem espera pelo dono para se divertir.
Dobrou as bainhas da calça enquanto também dobrava os minutos para ampliar a aflição da espera. Fazia tempo que não se viam ou pelo menos aparentava fazer. Ele ajeitava a blusa já molhado em emoção, mas sem deixar escapar um suspiro que fosse notável. A indiferença fazia parte da sua sedução. Ela também sabia esperar, ainda que de mãos suadas e unhas roídas, sem fazer barulho.

Cadenciando o desejo, ele aproveitava os segundos de dor. Ela angustiava com o coração espetado no ponteiro. Munido de opções, optava por não ser austero ao menos dessa vez e fazer do encontro uma piada doce. Ela, perdida da mente e corpo do rapaz, sonhava em se lambuzar do que lhe faltava. Era amargo enquanto não lhe vinha. Era quente. Já fervia.

Caminhava ele pela casa, sem os sapatos, escorrendo pelo piso frio, para fazer evidente sua presença. Ela mordia os panos da cama como se os ruídos dele fossem dias. Dava voltas e evitava, ainda que preocupado em incomodar. Contornava tapetes e chinelos. Ela era quente por natureza e o chão gelado contrastava com seu calor. Ele sabia. Hesitando, abriu a guarda antes do marcado.

Os olhos travaram e já era tempo. Ele, decidido em esbanjar a espera num próximo instante glorioso, entendeu que ainda valeria mais esperar. Ela, torturada pelo incerto, se jogou sobre seus ombros estalados e arranhou seus peitos como quem cava segurança. Estava certa de tudo e desfilava na falta do que não tinha julgo. Ele protelava no poder do artigo. Dominava meio que sem saber como.

As mãos se tocavam de leve e os corpos rosnavam ritmados um no outro. Pescoço torto, boca larga, pele macia e vapor nos olhos. O cheiro, o medo, a falta, o desejo e o carinho emplacavam em fraternidade. Os corpos se conheciam, tremiam, ansiavam e a mente firme forçava a espera. Quanto mais se fazia demorar, o sabor regozijava quieto por sugar. Mas o tesão virava raiva, o carinho descontrole e o certo atordoava.

Corpos colados, mãos firmadas, e cobranças verbalizadas. A espera só é boa quando saboreada mutuamente. Ela não entendia, implorava, contornava, redimia, estapeava... Ele sabia que iria dar merda. Melhor acabar com o sofrimento e cortar de vez a brincadeira que se revelara paralela. De corpos colados, beijados, ele finalmente cedeu, de jeito tão suave que mal se podia ouvir. A resposta também foi em silencio, só para casar. Assim finalmente terminavam o que na verdade tinha início. Selados, tornavam-se mais e seguiam só os dois.

domingo, 5 de dezembro de 2010

A Morena e o bufão

Victor Rocha Nascimento

Quem vê a Morena desfilando nas ondas de pedra, corre o risco de se apaixonar pelo que é puramente belo. De sedutor é viciante. Com o vento nos cabelos e na saia de pano, esbanja o dom de ser carioca e faz queixo de toda idade pousar no chão. De nariz em pé e rebolado de samba, a Morena tem noção exata do poder da sua natureza. É jovem, é forte, é moderna e decidida. Quando sorri é para atacar corações. Riso largo, definido, escroto e assassino. Riso certeiro, feroz, de quem sabe o que quer e conquista com olhar apertado. É graça de menina. É repleta uma mulher. É a boca perfeita que encaixa na orelha, na boca, no pescoço... É uma personagem, é uma lenda.

Quem vê o bufão deslocado pode imaginar que o garoto bobo do interior que se joga em cada canto, que deita nos becos e espera a barba crescer enquanto escreve frases sem futuro, está perdido em si e tentando descobrir o mundo. Um sonhador pós-moderno que se força a sobreviver mesmo sem espaço para respirar. É quase um escarro da cidade grande. Muda, procura, culpa. Pela displicência e falta de amor próprio, pode até fascinar. Pelo gosto estranho, amigos confusos e metodismo aflorado, chama a atenção. É quase uma personagem. É quase, é nada. Vem atrás de sabe-se lá o que. É ínfimo, meijengro, medonho, escroto, enferrujado. Nas ruas assassino culto, acuado, misterioso. No quarto é poeta romântico.

Entre dedos grafados e luz de três cores, um encontro de vazio. Se aproximam na distancia circunstancial dos contatos repentinos. Ela como ela, sendo ela e só ela. Ele como ele, sendo ele e só ele. Não posso ver maiores dificuldades, maiores desavenças e destinos trocados. Não posso ver maiores diferenças. Ela viu diferente.

No tormento da ação de riscos, nos falece da ponta o mal que prevemos de início. Limpo de cataclismos, deveria apenas sentir e ser e fazer. Deveria ser livre de se e dos outros. Desorientado e predestinado, não é possível. Deveria, e só. Não cabe ao homem formar nem escolher o coração que tem. Nada além de aceitar e tentar ponderar o óbvio e imutável.

No encontro em que cruzam olhos, bocas, corpos e signos, cruzam estrelas e o abençoar de morcegos na noite. Ritmos contestáveis foram mudando. A Morena do Rio quebra o paradigma de homem sério e sofrido do escritor renegado. Ele é o que reclama, condena, indefere, analisa, pondera razões. Ele é o frio que se apaixona, o louco que se condena. Perto da boca dela, ele não é nada. Já não é mais nada. Não existe o passado. Existe o bloco-do-prazer, o mandarim, o carmim.

Ah, Morena. Desse teu jeito de moleca, irritante e satírico, me perco ao inoculado temor das pernas. Não sei se te temo ou se a mim. Ah, Morena, não deveria ser assim. Por mais que te julgue mulher e que te veja em forma, nada mais que luz me toma. Ainda não vejo, não entendo, não te tenho. Queria fingir que pode ser tudo o que me parece. Queria te conter, me conter. Queria te contar, me poupar, engolir. Queria ter no olhar o que jamais entendi.

A Morena é o que é; e como morena, como carioca e como mulher, não se pode penetrar o tão fundo na mente quanto quereríamos pobres mortais. Ela só leva, protela, até gosta, se diverte e maneja. Ela quer futuro, quer emprego e quer o mundo. Mas morena também sonha, e por mais tortos que sejam os sonhos, sempre escorrem por um caminho que bifurca e reencontra, recose. Também é de sonhos que se faz a Morena, e de amor que quer viver.

E o que de novo pode em uma relação que já foi cantada em toda praça? A mim não importa e chuto que pensem eles o mesmo. Não importa quantas vezes o belo seja cantado, sempre soa suave, moderno. Sempre inveja e encanta. E que fim teria? Provavelmente o pior de todos, o mais sofrido, terrível. Mas como falar de fim se nem início existe? Nas relações ecoam sentidos difusos de certo e errado, sentidos de fim. Basta existir e o que é se sustenta.
Se existe um final, é a hora em que a gente ri.