quarta-feira, 29 de julho de 2009

Exatamente como outra qualquer

Victor Rocha Nascimento

Era uma noite como outra qualquer. Lá fora, o mundo caótico das incertezas e a guerra diária pela soma da vida. Eu estava em meu escritório, seguro, porém mais próximo da guerra do que poderia aparentar. Meu emprego estava na incerteza de um bom texto.
Um inverno tenebroso soprava, empurrando minha persiana, o que resultava em um barulho absurdamente irritante e me impossibilitava o bom uso do pensamento. Eu estava trabalhando até mais tarde, com a certeza de que nada me incomodaria naquele início de madrugada a não ser minha própria incompetência. Mas foi neste momento, o menos esperado, que ela apareceu, entrando de forma avassaladora em minha sala.

Linda e conquistadora, com uma sedução quase profissional, daquelas que só se tem com muita prática. Andava com uma volúpia estonteante no corpo e um convite ao pecado nos lábios.
Ela me vinha com soluções, e não com problemas. Mais uma coisa a qual tive que me render e admirar. Não é sempre que invadem seu recinto para presenteá-lo com notícias boas.
Boas? Quem sabe? De pessoas assim, não se pode esperar nada.

Ainda que a tentação me corroesse, me mantive firme, tentei lutar. Mas no momento eu estava tão fraco... O peso do mundo havia pairado sobre mim e a inspiração me abandonado a tempos. Restava a obrigação da manhã e as malditas persianas chicoteando a parede.
Eu era um universo de problemas e ela me parecia tão bela, e vinha com tantas respostas.

Há de se entender. Em um momento de total nervosismo e desespero, recorremos às atitudes mais loucas, sem pensar nas consequências que poderão acarretar. Basta escolher e sentir o breve alívio da solução.
As soluções são drogas e todos somos viciados nelas. O estresse é a abstinência.
Pessoas de carne, osso e coração me entenderiam. As leis não.
Mas de que importam as leis que duram anos de incertezas comparadas ao pão de amanhã?

Me faltava inspiração. Me faltava um texto para dali a algumas horas. E ela parada na minha frente, me oferecendo uma saída. E como ela era linda, sedutora. Me fazia respirar ao prender a respiração. Tornava a noite mais quente, tornava certo o errado, me tornava dependente e mais frágil enquanto eu não conseguia desgrudar olhos e mente de sua beleza.

Finalmente, antes de decidir aceitar a ajuda, lavei a cara, dei um ultimo gole de café e perguntei seu nome.
Ela respondeu: "Me chamam de Plágio".

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Designação Póstuma

Victor Rocha Nascimento

-Droga, mas que sol é esse?

-Que sol?

- Este que não me deixa descansar em paz! Está rasgando todas as brechas e me acertando nos olhos.

-É verdade. Acabo de notar. Gente porca e tosca. Não conseguem nem deixar um pobre defunto descansar. Não só pelo sol que te acordou. Não conseguem parar de falar e chorar e cochichar. E o pior dos tantos cochichos é que daqui não consigo ouvir nenhum.

-Nossa, é verdade. Havia me esquecido que estava morto. Se não fosse você eu levaria horas para lembrar... Não sinto nada, como em um sonho e, no entanto, tudo parece tão pleno e real. É como uma manhã de sábado, onde o sono é mais forte do que a curiosidade dos olhos.

Mas, afinal... Quem é você?

-Que pergunta idiota. Você está morto. Não pode mais falar, apenas pensa. Logo, se está pensando e eu escutando, e respondendo... Eu sou você. Estamos discutindo sozinhos. Você com você mesmo, eu comigo mesmo... Nós dois. Somos parte de uma reflexão solitária... Idéias rebatendo idéias e chegando a conclusões lógicas. Um monólogo dos mais originais. Não passamos da mesma coisa em questão, nada mais, nada menos.

-Interessante. E pensando bem, tem lógica. Claro, claro... Se é que você sou eu, acho não devo dever discutir, ou acabaria caindo em contradição. Melhor acreditar que estou certo, como sempre se faz. Não quero me tornar louco logo agora. Depois de tudo que passei nessa vida, ou melhor, naquela vida, seria um tremendo pesar virar maluco depois de morto.

-Se é assim, já está louco. A única forma dessa conversa chegar a algum lugar é com contradições, e já falei a respeito disso. As idéias têm que entrar em conflito para que haja alguma evolução no pensamento... Se não fosse por isso, eu não deveria estar aqui. Não existiria. Mas pode ficar tranqüilo. Gosto muito de minha existência e se não vierem de você, as idéias opostas partirão sempre de mim.

-Tem razão, deve estar mesmo certo. Acho que o fato de morrer e não ter como falar com ninguém, além de comigo mesmo, me deixou assim, pensativo demais. Vou parar de pensar tanto e deixar a conversa rolar. Ainda que a conversa toda seja puro pensamento reflexivo. Não sei mesmo como vai ser daqui para frente. Vai que tenho que passar a eternidade toda falando comigo mesmo, ou com você. Tenho que estar disposto a encarar isso. Talvez a própria loucura seja o melhor consolo para um pobre defunto como eu.

-Ora, ora, agora quem me atrapalha é você... Pare de pensar tão alto e ainda mais essas reflexões vãs. Quero tentar escutar o que estão falando. É complicado saber quem veio ao meu velório com algodões nos ouvidos e olhos fechados. Maldito seja aquele que me cobriu os olhos!

-É verdade. Não me atentei para isso. Meu velório! Dizem que é o único momento em que se pode descobrir os amigos de verdade. Quem realmente se importava com você.

Vai dar para ter uma idéia. Se estiver cheio, posso ter a certeza de que em vida, tive muitos amigos de verdade. Tenho que aproveitar ao máximo essa oportunidade. Todos dariam tudo para ver seu próprio velório!

-E você realmente acredita nisso?

-Como assim?

-Será que tenho que explicar tudo? Em primeiro lugar, ninguém daria muito para ver o próprio velório, já que para isso a pessoa teria que morrer e... Não acredito que apostariam a própria vida por essa chance. Tudo bem, talvez você o fizesse, mas... Ah, é melhor não o insultar, pois eu mesmo poderia ficar mal com isso.

-Tem razão! É melhor não insultar... E acho que isso não vai ser necessário, já que não paro de me contradizer.

É bom ter você por aqui, ou eu mesmo. Pelo menos fico seguro em minhas tolices tendo você para ponderá-las. Mas o que vem em segundo lugar?

-Bem, em segundo lugar... Pelo que estou notando... E se você ficar quieto e atendo também irá notar... Nosso velório não é dos melhores.

-Mas ele está cheio! Só do barulho e dos choros e dos cochichos já posso me animar.

-Não importa quantidade, meu caro. Veja bem. A maioria das vozes é desconhecida. São poucos os choros realmente sofridos e os cochichos não passam de fofocas maldosas.

-Pensando bem, tem razão. Você realmente abre meus olhos! Nada como pensar bem nas coisas antes de chegar a uma conclusão imutável! Mais da metade das pessoas que veio me ver, se quer me conheceram. Alguns parentes próximo e alguns que por pouco não desconheço. Lembro vagamente das vozes e do jeito de falar, mas o suficiente para saber que vieram apenas para fazer média com o resto da família. Talvez para que em seus próprios velórios, todos também compareçam. Tenho sorte por minha esposa estar aqui, e pelo que posso notar, está deveras aflita. Porém com muitos amigos meus prontos para ‘consolá-la’. Amigos da onça, isso sim!

Uma observação... O consolo ao qual me referi era puramente sarcástico. Eles estão querendo se aproveitar da fragilidade de Ritinha e...

-Tudo bem, tudo bem... Lá vem você com essas bobagens. Eu notei seu tom sarcástico, e mesmo que não notasse, eu estou bem próximo das suas idéias para saber ao que você se refere. Mas veja por outro lado. Eles podem não estar aqui por nós, mas pelo que conhecemos de alguns deles, se Ritinha escolher direito, pode se dar muito bem.

-Pelo que conhecemos dela, não vai escolher assim, de primeira. Vai levar pelo menos alguns anos de luto... Isso se não preferir passar a vida toda sozinha.

-“Conhecemos dela?” Como assim? Não temos como ter certeza de nada a respeito dela. Tudo bem, cinco longos anos de amor, felicidade e rugas. Mas nunca se pode estar certo sobre as idéias mais imas de uma pessoa, e nem mesmo sobre seus segredos. Nós trabalhávamos muito... E ela ficava muito tempo sozinha... O que não vem ao caso.

- Mas você mesmo falou sobre o quanto conhecemos nossos amigos. Vai mudar de idéia falando de Ritinha? Não vá se contradizer sozinho, ou teremos uma terceira companhia.

-Não, não estou a fim de mais um para me atrapalhar, tornaria tudo muito confuso! Além de ser possivelmente outro tagarela e não me deixar ouvir as fofocas do meu próprio funeral.

Vamos lá, preste a atenção. Amigos são amigos... Amigos são homens. Os conhecemos bem, sabemos suas limitações e suas capacidades, até mesmo para a traição. Agora... A Ritinha é uma mulher. Delas sim, não se pode esperar nada.

-Pode estar certo, até porque é comum para nós, homens, estar sempre aflitos e refletindo a respeito da fidelidade e do caráter de nossas mulheres... Mas não quero pensar nisso e me torturar agora que já estou morto. Passou da hora de me aventurar com esse tipo de pensamento, isso é coisa para quem fica. Tenho que resolver logo o melhor para minha família, já que não sei o tempo que me resta aqui, nesta lucidez. Vejamos então... Existem três boas oportunidades. São homens pintosos, elegantes e grandes amigos! Todos sempre foram apaixonados pela Ritinha... Mas foi comigo que ela ficou.

-Sim, ela nos preferiu passando por cima de todos esses partidões. Fomos o homem mais feliz do mundo enquanto durou, mas acho que é chegada a hora de passar o bastão. Vamos analisar bem as características de cada um. Escolheremos o melhor para Ritinha e, por fim... É... Por fim, o que faremos?

-Isso não importa... Assombraremos, incorporaremos, ou, no mínimo, ficamos na torcida. Ainda assim, creio que ter morrido tem suas vantagens e que alguma coisa vou poder fazer para ajudar a Ritinha nesse momento tão difícil. Não é possível que não possa! Seria uma pós-vida muito limitada, muito triste! De alguma forma, vou interferir.

-Se é o que pensa, então vamos logo recordar os fatos e nos preparar para essa difícil escolha. E agora sim, teremos que chamar um terceiro para nos contar tudo bem direitinho, e possamos analisar com calma os fatos. Uma terceira parte de nós, que até o dado momento estava apenas sussurrando algumas coisas em meio a nossa discussão, mas que agora poderá falar a vontade, e ficaremos quietos para escutar. Pois bem, que fale a Memória!

***

Éramos quatro grandes amigos. Eu sempre fui o mais feio, mas a Ritinha não se importou com isso. Olhou-me com os olhos do coração.

Foi no Baile de formatura... Durante anos, nós quatro sonhávamos com sua beleza e doçura, mas as mesmas beleza e doçura fizeram com que nunca conseguíssemos chegar muito perto dela. Nem eu, que sempre fui um típico covarde; nem Júlio, corajoso, mas viciado demais em seu platonicismo poético para abordá-la; nem David, ainda que com sua postura sempre rígida e galanteadora; e nem mesmo Valentim, sempre tão seguro, forte e inteligente.

A verdade é que nós quatro vivíamos com a típica tristeza poética dos adolescentes platônicos, se é que “adolescente” e “platônico” não exprimem uma redundância. Em fim... Foi necessário que ela tivesse a incitativa. Foi pouco depois da entrega dos canudos, já no baile.

A Festa explodia em bebidas e garotas. Nós, como bons jovens no início da vida sexual, não conseguíamos controlar nossos hormônios. A cada rostinho, a cada olhar, a cada corpo, a cada dança colada, nos apaixonávamos por uma garota diferente. Ainda assim, nossos corações eram muito bem direcionados, e todo corpo ou tentação se tornava mínima perto da grandeza de Ritinha. Ela era tudo que qualquer garoto, jovem ou homem sonharia. Linda, escultural, inteligente, doce, meiga, respeitadora e um pouco tímida, o suficiente para formar sua cativa misteriosidade. Ah, bons tempos.

Ela se aprontou como rainha para a festa. Um vestido branco, longo, luvas de seda, lápis nos olhos e brilho nos cabelos. Estava divina, como eu, Júlio, David e Valentim jamais tínhamos visto, mas como sempre imaginávamos em nossos sonhos mais afortunados.

E foi desse jeito que ela veio até mim. Chamou-me para dançar, me fez beber, ludibriou minha timidez e aí, conseguiu me roubar um beijo. Um beijo roubado que eu daria de graça, com toda certeza, ou até mesmo pagaria para que ela me roubasse. Ah, Na época eu pagaria para que ela me tirasse o que bem entendesse... E foi mais ou menos isso o que aconteceu depois da festa, na casa de David.

Os pais dele tinham viajado... Gente rica é assim mesmo, acham que esses momentos são bobagens e não ligaram muito para o fato do filho estar se formando. Para eles a festa verdadeira veio antes, com as notas brilhantes de David. Mas nem ele e nem seus pais têm a ver com isso. O que importava agora era uma casa gigantesca, com vários quartos confortáveis, onde vários formandos bêbados passariam a noite. Entre eles, eu e Ritinha. E não poderia ser uma noite melhor. Passamos a madrugada juntos. Ou o fim dela. Foi a primeira vez de Ritinha e ela receou a ir para o quarto reservado para nós, mas depois que tomou coragem... A primeira vez dela foi aos meus braços. Não poderia haver privilégio maior. Depois o namoro, o noivado, o casamento e... Até a morte. Ela nunca teve outro homem... O que torna a tarefa ainda mais difícil.

Sim, estávamos os quatro na casa de David. E ainda hoje sinto a inveja deles me cutucando por meu triunfo, mas não posso culpá-los, eu estaria do mesmo jeito.

Pobre David, sem saber direito, nos presenteou com nosso ninho do amor, nos fez selar para sempre nosso romance, que mais puro e belo nunca houve, e talvez nunca haverá neste mundo.

David era assim, e continua sendo. Rico, inteligente e determinado. Talvez um pouco frio... Quanto mais se aproximava à idade dos pais, mais parecido com eles ficava.

-É verdade. Com ele, Ritinha teria vida fácil, muito menos problemas do que conosco ou com qualquer outro. Ela teria de tudo e seria bem cuidada até o fim da vida.

-Pode ser, mas ele é um tanto egoísta e profissional de mais. Não sei mais se continua gostando dela como quando garotos ou se agora apenas quer uma mulher bonita e educada para apresentar em seus jantares chiques.

-Então, vamos analisar o próximo.

Júlio era talvez o mais romântico. Nisso, era muito parecido com Ritinha. Posso ver os dois juntos, se divertindo, brincando... E, como sempre falava Júlio, com uma multidão de filhos. Era o sonho dele. Casar com Ritinha e ter uma vasta prole. Um mais belo que o outro. Ele fazia questão de pensar na felicidade das crianças e, sendo assim, não queria ser o culpado pela tristeza da feiúra de nenhum. Seu dever era não só encontrar uma mulher bonita, como também que tivesse um físico similar ao seu, para ocorrer uma ‘boa combinação de genes’. Sempre apontava Ritinha como perfeita para o papel.

Muito romântico, apesar disso. Sempre foi um sonhador, um poeta, constantemente feliz e esperançoso com o futuro, mas... Pobre. Entre os amigos sempre falamos que ele vivia mais dos sonhos que da realidade. Passou a beber muito e tivemos que sustenta-lo algumas vezes. Ajudar em suas dívidas. Não é má pessoa, mas com o tempo foi tomado pelos vícios e caiu na pobreza. Um tipo aventureiro, desses que sonha com uma família, mas nunca daria certo em uma.

-Pois bem, Júlio é o oposto extremo de David. Também não daria certo. Numa relação, basta um sonhador. Como ele poderia sustentar uma mulher e tantos filhos se não é capaz nem de sustentar seus próprios vícios?

-Se formos olhar para o passado, quando dependíamos de nossos pais e de nossas próprias descobertas para formarmos nossa identidade, ele seria perfeito. Mas hoje, não daria certo. Ele continuou um sonhador, mas agora sem ter quem sustente seus sonhos. Talvez um dia lance um livro, seja muito rico, famoso... Mas não podemos contar com isso. É da felicidade da doce Ritinha que estamos falando.

-Bem, então vamos ao ultimo. Valentim deve ser um meio termo. Talvez seja nossa resposta.

Valentim sempre foi independente. Apesar de mulherengo, era forte, trabalhador, honesto, digno... Entre os quatro amigos, era sempre como um líder. Inventava planos mirabolantes de diversão perigosa e, no fim, sempre conseguia livrar a cara de todos nós. Isso quando não assumia a culpa de tudo sozinho. Coisa de moleques. Ao envelhecer se tornou empresário. Nada que lhe fizesse rico, mas teve uma vida confortável. Todos o admiravam e o admiram até hoje. Todos querem ser iguais a ele ou então ser o próprio. Ser tudo o que ele é e ter tudo o que conquistou. A única coisa que ele nunca teve foi Ritinha. Mas fora isso... Uma vida perfeita. Pôde se casar, e viver bem com sua mulher e três filhos.

-Espera! É verdade! Ele é perfeito... Tão perfeito que já é casado, com uma mulher linda e tem uma família linda.

-Por certo que sim, mas sabemos que possivelmente ele trocaria a família por Ritinha.

-Tem razão. Mas não quero esta vida para Rita. Seriam muitos problemas, muita complicação. E talvez... talvez Valentim já seja feliz o suficiente, e ao trocar tudo por Ritinha, note o tanto que perdeu e queria voltar atrás. Não daria certo. Seria só mais um motivo de sofrimento para ela.

-Sem contar que sabemos muito bem como Valentim é. Ele não consegue se prender a uma mulher só. Neste ponto tenho pena da coitada que se casou com ele, e não desejaria isso para Ritinha.

-Tudo certo, Valentim também está fora.

-Então, entre os três... Nenhum daria certo?

-Talvez estejamos vendo problemas demais neles. Talvez seja só uma crise de ciúmes nossa. Talvez, quem sabe... Ela mesma deva escolher, sem interferência nossa. E... Talvez nenhum dos três. Nem sabemos se temos como interferir, mesmo.

-Mas que bobagem. Cuidamos dela por longos anos, e agora, se pudermos fazer alguma coisa para saber que ela vai estar em boas mãos, será feio!

-Está certo. Vamos trabalhar para isso então!

-Espera um pouco...

Está ouvindo?

Estávamos nos movendo. Acho que estavam carregando o caixão. E agora... Tudo é silencio.

-Deve estar certo. A luz do sol se foi, agora já dá até para dormir.

-E você quer dormir agora? Ainda não terminamos nosso papel nesse mundo. Temos que encontrar um bom partido para Ritinha. Um ser tão perfeito não pode ser jogado aos sete ventos assim. Temos que cuidar para que tudo fique em ordem.

-Ouviu isso? É o padre... Acho que estamos prestes a ser enterrados.

-Droga. Então vamos agir logo. Temos que decidir com quem Ritinha deve ficar.

-Acho que não temos mais tempo.

-Temos que ter. Não pode acabar assim. Tem que haver uma resposta. Tem que haver!

Não pode ser! Temos que poder fazer alguma coisa por ela.

É tão frágil e pequenina. Doce e linda. Ainda como no dia do baile.

Ela não vai conseguir enfrentar esse mundo, sozinha.

Não pode acabar assim.

-Acabou tudo. O que será que vem agora?

***

Silencio.

-Está ouvido? São passos arrastados na terra fofa... Alguém se aproxima...

- Mas pensei que já havia acabado tudo...

-Meu amor...

-É ela, a Ritinha! Fica quieto, vamos ouvir!

Meu amor...

Você se foi, e nem tivemos tempo de comprar a nova casa. De ter os filhos tão esperados. De realizar todos nossos sonhos. De viver as aventuras da velhice juntos, e ver a vida passar com calma. É verdade, não existe essa história de “felizes para sempre”. Um dia, quando menos esperamos, tudo acaba. Tudo perde a cor, tudo fica sem graça. Mas acho que não posso deixar isso me afetar tanto. Até por respeito a você, tenho que aproveitar a vida que me resta.

Por tanto tempo eu me diverti com você... Você me sustentava, me amava, me dava carinho e cuidava de mim. E ainda hoje, depois de ter indo embora, continua cuidado de mim e pensando em mim. Deixou tudo preparado antes de partir.

Mesmo depois de morto, você ainda deixou seus três melhores amigos para cuidar de mim.

-O que? Mas será então que...

-Eu não disse? Alguma cosia podemos fazer! Deve ser a força do amor. Ela pode nos escutar e...

-Shhhhh!

Pude notar hoje que mesmo com sua ida, eles não irão me abandonar. São pessoas maravilhosas, confesso. E acredito que não vai haver nenhum problema maior em lidar com eles.

Desde antes, mesmo sem saber, eu me preparei para esse dia. Você trabalhava muito, ganhava pouco... E eu, com o tempo livre... Encontrava neles o que me faltava em casa. Você nunca soube, e eu prezava este segredo por você. Sempre por você. Creio que não gostaria de saber disso, mas acho que agora não deve mais se importar.

Eu sei que não era sua intenção, nem o culpo por nada. Mas minhas tardes eram muito solitárias e seus amigos se faziam sempre presentes...

Você não imagina como era bom poder passar horas conversando com Júlio. Tínhamos tudo a ver. Falávamos sobre as mesmas coisas, nos entendíamos muito bem e... Ele era magnífico na cama. Sabia como tratar uma mulher, com todas suas necessidades e desejos.

Já Valentim, era fantástico! Conseguia arrumar tempo para mim e para sua própria família, sem que nem a mulher dele e nem mesmo você notassem. Você tinha razão quando falava sobre as virtudes de Valentim, pude provar de quase todas. Você teve muita sorte de ter amigos assim. Um homem tão charmoso como ele, dono da própria empresa... Acho que por ser chefe, tinha tempo para tudo isso. Enquanto você... Tinha que ficar fora o dia todo. Nada contra, meu amor, mas todas aquelas tardes, sozinhas, sem ter o que fazer... E propostas como a de Valentim... Convenhamos que era impossível recusar.

Com David a história era diferente. Não me atraia muito o jeito dele. Era frio, muito ruim na cama, pensava muito mais nele do que no resto. Mas como eu conseguiria, por exemplo, este vestido lindo que estou usando agora se não fosse por ele?

É verdade. Estou certa de que os três vão cuidar muito bem de mim, como sempre fizeram. Mas é claro que vou sentir sua falta, de todos você era o mais importante, o melhor. O único defeito em nosso casamento era ter tão pouco tempo para nós dois. Nada que não pudesse ser suprido. Eu sei que não foi culpa sua.

Foi por isso, por ser o melhor que escolhi você na formatura. Entre os quatro, você.

Confesso ter sido um pouco calculista ao embebedar todos vocês e ficar com cada um de uma vez para decidir o melhor. E depois, na casa de Devid, descobrir o mais intimo de cada um, na cama.

David foi o primeiro, claro, estávamos na casa dele... Como você estava no quarto mais distante, acabou sendo o ultimo. Acho que foi azar... Mas, em fim.

Importa que com tudo isso, você foi o escolhido. Você foi o melhor no conjunto e não me arrependo de ter ficado com você. Até porque, eu mal sabia que ficando com você, teria as virtudes de cada um quando eu bem quisesse.

Nossa! Não faz idéia de como falar tudo isso agora me faz bem. Me sinto bem melhor. Se eu tinha alguma culpa da sua inocência, antes, agora se foi. E nem sei se você pode mesmo me ouvir. Que loucura!

Ah, foi bom enquanto durou. Muito bom. Não poderia esperar vida melhor.

Nunca mais será a mesma coisa. Sinto sua falta.

Até algum dia, meu amor, mas... Que esse dia custe a chegar.

Silencio.

-Mas que filha da...

-Pode parar, não devemos falar coisas desse tipo. Não agora. Logo agora que já morremos.

-Desgraçada. Se eu não estivesse morto, eu iria... iria...

-Iria o que?

***

-Ritinha, acorde! Acorde! Deixe de ser mole!

-Acordar? Agora? Mas por quê? Droga! É cedo.

Que choradeira é essa que não me deixa dormir?

-É o seu velório. Com o tempo vai se acostumar.

-O que? Eu morri? Mas... Não me lembro bem...

Eu...

É verdade!

Eu me lembro... Mas foi tudo tão rápido. Se você não me falasse, eu levaria horas para lembrar. Eu estava saindo do cemitério e... De repente... Um tropeço, um escorregão, não sei bem... Um caminhão e... Ai que dor de cabeça! Não entendo muito bem como foi acontecer.

Mas, se eu estou mesmo morta, então quem é você?

-Rá, rá, rá... Pois é, eu disse que poderia interferir em alguma coisa. Estar morto tem suas vantagens.

terça-feira, 21 de julho de 2009

A noite passada

Victor Rocha Nascimento

Ele acordou.

-

Olhos pro teto e as imagens da noite refletidas na tinta branca.

O que será que sonhou? O que será que fez ontem à noite? Afinal, que dia era hoje?

Aos poucos as ideias preenchem a mente. O que restava de lembranças dos sonhos tidos na madrugada se vai, dando lugar ao mais importante, a noite passada.

Aos poucos imagens, sentimentos e lógicas se unem, formam a lembrança e a fortificam.

“Será que foi isso mesmo? Nossa! Acho que foi. Será que não estou confundindo o sonho da madrugada com os fatos da noite passada? Talvez. Será que estou mesmo acordado ou tudo isso ainda é um sonho? Nossa, acho que foi verdade!”

Certeza, certeza não se tem. Até porque foi bom demais para se acreditar, de primeira, que foi verdade. Mas a memória insiste que na verdade aconteceu, daí ele lembra. Não tem como não ser. Noites boas, que mexem com a gente, sempre se parecem assim na manhã seguinte.

Houve uma festa... Houve bebida... Houve amigos... Mulheres... E Ela. Mais linda e importante que todo o resto.

-

Ela.

-

Na noite passada, em meio a risos, brincadeiras, histórias e bebidas, ela o olhou, sorrindo. Ele não poderia pensar mais nada a não ser que se tratava da mulher da sua vida. Aquele sorriso, aqueles olhos, aquela pele, aquela boca. Tudo nela era perfeito. E ainda não teve tempo de lembrar se a conhecia há mais tempo ou se fora amor de primeira vista. Isso não importava, importava apenas Ela, e a noite.

O que ele sentiu ao ser olhado e receber aquele sorriso perfeito não pode ser comparado com nada, não se pode descrever. Apenas entende quem já amou plenamente e se sentiu amado igualmente. Aquele momento certamente entraria para um dos melhores da vida de qualquer um.

Mas ainda isso, todo esse sentimento e toda a força desse momento não se comparariam com o que ele viria a lembrar depois. Com como seguiram os fatos.

Ele continuou falando com os amigos, sobre assuntos agora pouco interessantes. Pelo menos para ele. Na verdade, os amigos conversavam e ele apenas os contentava com "pois é"s e "uhun"s. Sua atenção havia sido tocada e suas prioridades mudadas.

A prioridade era olhar por entre os amigos, por entre as conversas e por entre a música, o povo, as luzes e as bebidas e tentar, por entre brechas, olhar para ela.

Em meio a confusão divertida de toda a festa, alguma coisa aconteceu. Ela saiu, triste, abalada por um porquê desconhecido. Ele a seguiu para fora da festa, não poderia fazer diferente. Talvez comumente não o fizesse, tivesse medo ou vergonha, mas essa oportunidade não poderia ser perdida. Não essa.

-

Ela era perfeita demais.

-

Ao encontrar-se com ela, tão triste e tão perfeita, se viu na obrigação de fazer aquela dor inexplicável cessar. Quem poderia ter feito mal a um ser tão lindo, tão perfeito, tão frágil?

Em meio a um consolo, sem palavras, ele se aproximou, a recostou em seu ombro e a afagou.

O sal dos olhos da Menina escorriam por sua roupa. Ele se arrepiava e por pouco não chorou com ela, comovido por sua tristeza e chocado por sua proximidade. Não havia nunca tido um momento tão perfeito. A oportunidade de consolar aquele ser tão divino era mais do que ele poderia imaginar. Mais do que ele se dignava. Mas isso não o impediria de velar por Ela. Se ele teve essa chance e era o único a postos para ajudá-la, seria sua obrigação e ele a cumpriria com prazer.

Aos poucos as lágrimas se secavam e o rosto da Menina escorregava por seu peito, em direção aos seus olhos. Quando se deu conta, já era um beijo.

-

Um Beijo.

-

Um beijo como nenhum outro. Gostoso e sincero, com todo o amor do mundo, com toda a perfeição que um beijo pode ter. Um beijo como poucos conheceram na vida. Um beijo que apenas quem já selou seu amor eterno pôde sentir. Um beijo que mudou sua vida, que tornou tudo mais limpo, todos os problemas pequenos e fez o mundo melhor.

Após isso, tudo se passou muito rápido. Pessoas chegaram, as amigas dela e os amigos dele... Eles se separaram. A festa seguiu. Apenas mais alguns olhares perdidos em felicidade e falta e... Quando notou, já estava em casa. A noite havia acabado e lhe restavam a cama e os sonhos.

Quando notou, ainda estava muito pouco acordado para se lembrar tão bem de tudo, para dar o devido valor.

-

Quando notou...

-

Quando notou, ele sequer tinha realmente acordado. Ainda estava perdido em suas lembranças ofuscadas, embaçadas... Ele apertou os olhos e se virou contra o teto branco, respirou e tentou arrumar a cabeça. Só então, notou que a noite passada era outra. Uma noite normal, sem amigos, sem festa, sem bebidas, sem mulheres e sem Ela.

Pensando bem, já mais lúcido... Ele entendeu que a noite sequer havia acontecido e...

Ela sequer existia.

-

...Ela não existia....

-

Não...Não existia. A sua perfeição, a sua felicidade, o seu amor... Nada disso tinha acontecido. Nada existia.

-

No mundo real não, mas talvez... Se...

Sim! Claro! Dentro dele, é claro que Ela existia.

As belezas da mente jamais puderam ser superadas pela realidade. No amor, no afeto, na emoção, a mente sempre tem papel fundamental e a realidade ocupa um papel pequeno, quase figurante.

Verdade! Em algum lugar, dentro dele mesmo, Ela existia! Linda e carinhosa e perfeita como sempre, com vários outros sorrisos e beijos esperando por ele.

-

Então...

Quem sabe... Se...

-

Se...

-

Ele voltou a dormir.

domingo, 19 de julho de 2009

Ideograma inveterado

Victor Rocha Nascimento

Todos têm uma história, desde contos de fadas nos olhos até as duras marcas de vida no corpo. Desde os sonhos e mais loucas fantasias espirituais até os traumas trancados rigidamente por devastadores medo e culpa.

Partindo do ponto de vista, de saber procurar, toda história se torna boa e todas as pessoas já passaram por situações magníficas. No fim tudo é interpretado, são derivações dos olhos e da imaginação. Depende das palavras, do jeito, do momento, do ruído... Depende da vontade de quem conta e da disposição de quem escuta.

Tudo na vida é uma crônica, contanto que bem escrito ou bem contado. Um café da manhã, um quarto desarrumado, um jogo de futebol, um passeio e até uma ideia louca, um desabafo ao papel. E como faz bem desabafar pra ele.

Não tem amigos? É muito tarde para ligar? Uma idéia? Um desatino que incomoda pela madrugada, expulsa o sono e martela a mente? É simples, basta escrever (seus problemas de insônia acabaram! Rá!). Assim como é simples se ocupar e embriagar de imaginação com a leitura. Nada melhor que um bom livro para tornar o ser mais criativo (e essa criatividade , se mal controlada - mais idéias na madrugada, meu caso atual-, pode piorar sua insônia, mas não vou me embolar nisso).

Nestes dias de desocupado (podendo-se ler "descanso", porém creio ser inapropriado), vivo de sair e ler e escrever. Nada como ter uma boa roda de amigos. As idéias são cuspidas quase atropelando umas às outras, cada um com suas histórias, com suas vidas. Nada como ter bons livros para se preencher de novas idéias e fazer das antigas mais interessantes. Nada como unir tudo que leu e discutiu e poder escrever livremente, chegando ao ponto de não saber mais como parar. É algo como se esvaziar do peso das informações e ser preenchido pelas mesmas, de forma mais suave. É ruminar as idéias.

Quanto aos amigos, descobrimos grandes universos em cada um. Bibliotecas lidas e relidas em uma noite de boa companhia. Descobrimos em nós mesmos, dentro de nossas vivencia e observações diárias, imensos estudos e teorias fantásticas, que só recebem o devido valor quando resolvemos parar para pensar nelas.

Logo, o bom escritor não é aquele com maior experiência de vida, tão pouco o que viveu de forma inesperada e inconseqüente e apenas transcreve seus grandes feitos. O escritor se torna notável no momento em que sabe escrever. E não se deixe enganar pela gramática. Ele é bom escritor assim como um bom professor é aquele que sabe explicar e não o que puramente domina a matéria.

Toda boa história se torna boa apenas ao ser contada, antes disso, ela sequer existe.O melhor dos escritores pode tornar tudo interessante. Ele sabe como contar a vida com graça, sabe tornar a leitura saborosa, comover o leitor. Ele une a história à ideia.

É assim. Toda ideia é boa se for bem idealizada!

E a vida? A vida tem o papel fundamental de, em toda sua plenitude, ser a única inspiradora.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O ultimo espetáculo

Victor Rocha Nascimento

Uma cambalhota, duas e...

- Pula, pula! Corta a corda! Amarra! Atira! Acaba!
O povo pede, o palhaço obedece. Nada o faz mais feliz do que ser o centro das atenções, ser o rei do espetáculo. Nesse mundo novo, sua graça já não tem vez e resta procurar outros meios, ainda que o meio seja o fim.

- Pula, pula! Se joga! Morre logo! Covarde! Vai dar para trás?
O povo pede, o palhaço teme. Talvez o espetaculo não tenha que ter um fim, possa ser uma mentira, uma piada, mais uma palhaçada. Mas assim, o povo sai triste e não volta nunca mais. O palhaço pensa e sabe que é o momento de voltar a ser grande aos olhos do público ou de perder para sempre sua graça.

- Pula, pula! Vai logo! Agora vai ter que terminar!
-Acho que ele não vai.
- Claro que vai! Ele não tem mais motivo para existir. Eu posso apostar que vai!
As apostas se iniciam, o público ferve aos seus pés. O palhaço lembra do tempo em que isto era rotineiro e se depara com a realidade cruel do presente. Ele se anima, ainda que em pranto, por esta ultima oportunidade. Ele se empolga e encara a morte. Ele descobre que é melhor um fim alegre que uma seqüencia triste. E como fazer graça para os outros se o próprio palhaço não é feliz?

- Pula, pula! Será que agora vai? Não posso esperar o dia todo, tenho que trabalhar. Só mais um pouco e acho que ele vai!
Se não viver para o público, para que viver? No embalo da vida, se o mundo muda, o espetaculo tem que mudar. Se a platéia muda de gosto, o palhaço tem que mudar de palhaçada. É a regra, é a lei. Motivo de sua existência, sua tradição. Ser a graça maior das multidões. Este conceito é mais forte que tudo para ele, é a essência de sua vida. Também, não é nenhum grande esforço se submeter a isso, é o unico jeito que ele sabe viver.

Ele para... Respira... Se ajeita... Lembra de algumas piadas... Sorri de sua própria história... E vai.
Não poderia ser diferente. A platéia não pode ficar esperando e o show tem que continuar. O palhaço fez sua ultima graça, e acabou com toda a palhaçada.

sábado, 11 de julho de 2009

O grande Urso, quando amou

Victor Rocha Nascimento

Até o mais observador é cego ao ver seu amor.

O grande Urso brinca e se humilha, tentando decifrar a bela Flor:

“Por que dela tantos sorrisos, tanta graça e tão pouco amor?”

“Por que eu me torno o bobo, ao tentar fazer dela motivo de chacota?”

“Por que a Flor, tão bela, não desabrocha a quem te da valor?”


“Qual motivo de tantas barreiras? Um labirinto para o nosso amor!”;

Um pobre urso, que sempre foi tão forte, ainda que na dor

Teria, de uma vez por todas, que encontrar um fim, uma resposta.

Mas nada vem, além dos mesmos sorrisos, mesma agonia, a idéia oposta.


Quem sabe um dia o pobre Urso entenda a Flor;

E em toda sua graça, toda beleza possa ser desvendada;

O grande Urso mergulharia em seus mais profundos sentimentos;

E a linda Flor o corresponderia se deixando ser amada.


Porém, por hora importa o dia que passou;

Mais uma vez, o pobre Urso, numa tentativa desesperada, escorregou.

Por fim, com tantas teorias, tanta frase fina, ele era só mais um escravo do amor

Tentando encontrar justiça, atacando quem o roubou.


Ahh, se a gente deixasse de amar como quem para de fumar... A vida seria muito mais fácil!

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Análise ao sentimento

Victor Rocha Nascimento

O verbo sujo canta solene, querendo atenção.
Das palavras já ditas, nenhuma consegue tamanha proeza de explicar, nem se comparar ao sentimento.
Porque então, elas insistem em se arrastar? Em se humilhar para tentar provocar os homens, que por sua vez são infinitamente mais completos do que suas humildes criações?
Talvez porque sabem que são os provocados que as interpretam e, estes sim, lhes preenchem de sentido e vida.
Mas tal ato deve ser mesmo visto como pura provocação, já que também sabem, sem direito à contestação, que são os sentimentos patronos das palavras, e não o contrário.
Toda palavra passa a significar a mesma coisa se nos prendemos a uma paixão. Um sentimento unico domina todos os poemas, assim como toda mulher se torna uma, toda a alegria se torna banal.
Nada se compara ao amor, nem mesmo um ao outro. Todo sentimento é tão pessoal e tão momentâneo que deveria ser aproveitado ao máximo antes de perdido para sempre. Talvez, por medo de que se perca, converta-se em palavras.
Para o poeta, o sentimento é tão grande que, mesmo com a noção de não ser capaz de expressar e nem se quer qualificar muito bem, faz com que ele transborde em letras e ações no momento em que não pode mais comportá-lo em sí.
Sempre ele, o sentimento, patrono das palavras e dos homens. Cabe a ele definir caminhos, cabe a ele escolher, assassinar a lógica e dominar os seres. No fim, só resta sentimento.