domingo, 5 de dezembro de 2010

A Morena e o bufão

Victor Rocha Nascimento

Quem vê a Morena desfilando nas ondas de pedra, corre o risco de se apaixonar pelo que é puramente belo. De sedutor é viciante. Com o vento nos cabelos e na saia de pano, esbanja o dom de ser carioca e faz queixo de toda idade pousar no chão. De nariz em pé e rebolado de samba, a Morena tem noção exata do poder da sua natureza. É jovem, é forte, é moderna e decidida. Quando sorri é para atacar corações. Riso largo, definido, escroto e assassino. Riso certeiro, feroz, de quem sabe o que quer e conquista com olhar apertado. É graça de menina. É repleta uma mulher. É a boca perfeita que encaixa na orelha, na boca, no pescoço... É uma personagem, é uma lenda.

Quem vê o bufão deslocado pode imaginar que o garoto bobo do interior que se joga em cada canto, que deita nos becos e espera a barba crescer enquanto escreve frases sem futuro, está perdido em si e tentando descobrir o mundo. Um sonhador pós-moderno que se força a sobreviver mesmo sem espaço para respirar. É quase um escarro da cidade grande. Muda, procura, culpa. Pela displicência e falta de amor próprio, pode até fascinar. Pelo gosto estranho, amigos confusos e metodismo aflorado, chama a atenção. É quase uma personagem. É quase, é nada. Vem atrás de sabe-se lá o que. É ínfimo, meijengro, medonho, escroto, enferrujado. Nas ruas assassino culto, acuado, misterioso. No quarto é poeta romântico.

Entre dedos grafados e luz de três cores, um encontro de vazio. Se aproximam na distancia circunstancial dos contatos repentinos. Ela como ela, sendo ela e só ela. Ele como ele, sendo ele e só ele. Não posso ver maiores dificuldades, maiores desavenças e destinos trocados. Não posso ver maiores diferenças. Ela viu diferente.

No tormento da ação de riscos, nos falece da ponta o mal que prevemos de início. Limpo de cataclismos, deveria apenas sentir e ser e fazer. Deveria ser livre de se e dos outros. Desorientado e predestinado, não é possível. Deveria, e só. Não cabe ao homem formar nem escolher o coração que tem. Nada além de aceitar e tentar ponderar o óbvio e imutável.

No encontro em que cruzam olhos, bocas, corpos e signos, cruzam estrelas e o abençoar de morcegos na noite. Ritmos contestáveis foram mudando. A Morena do Rio quebra o paradigma de homem sério e sofrido do escritor renegado. Ele é o que reclama, condena, indefere, analisa, pondera razões. Ele é o frio que se apaixona, o louco que se condena. Perto da boca dela, ele não é nada. Já não é mais nada. Não existe o passado. Existe o bloco-do-prazer, o mandarim, o carmim.

Ah, Morena. Desse teu jeito de moleca, irritante e satírico, me perco ao inoculado temor das pernas. Não sei se te temo ou se a mim. Ah, Morena, não deveria ser assim. Por mais que te julgue mulher e que te veja em forma, nada mais que luz me toma. Ainda não vejo, não entendo, não te tenho. Queria fingir que pode ser tudo o que me parece. Queria te conter, me conter. Queria te contar, me poupar, engolir. Queria ter no olhar o que jamais entendi.

A Morena é o que é; e como morena, como carioca e como mulher, não se pode penetrar o tão fundo na mente quanto quereríamos pobres mortais. Ela só leva, protela, até gosta, se diverte e maneja. Ela quer futuro, quer emprego e quer o mundo. Mas morena também sonha, e por mais tortos que sejam os sonhos, sempre escorrem por um caminho que bifurca e reencontra, recose. Também é de sonhos que se faz a Morena, e de amor que quer viver.

E o que de novo pode em uma relação que já foi cantada em toda praça? A mim não importa e chuto que pensem eles o mesmo. Não importa quantas vezes o belo seja cantado, sempre soa suave, moderno. Sempre inveja e encanta. E que fim teria? Provavelmente o pior de todos, o mais sofrido, terrível. Mas como falar de fim se nem início existe? Nas relações ecoam sentidos difusos de certo e errado, sentidos de fim. Basta existir e o que é se sustenta.
Se existe um final, é a hora em que a gente ri.

Um comentário:

Jéssica Quadros disse...

Muito, muito bom. Conheço essa música.