sábado, 24 de outubro de 2009

O romeiro íntimo

Victor Rocha Nascimento

O cara era um cearense típico. Cabeça chata, velhice de gastura e determinação no brilho dos olhos. Usava roupa fina, ainda com etiqueta, para divulgar a marca, e tentava manter a poeira dos caminhos distante de sua seda perfeita. Era como se fosse revestido de um campo protetor, e qualquer ameça à sua integridade era ferozmente atacada e deixada para trás com o vento.

Além das vestes impecáveis, e do chapéu coco, não carregava mais nada que o homem normal, comum, idiota, possa ver, assim, na cara. Fora isso, cantava para si mesmo, e como cantava...

Viajava montado num burro magro e de baixa estatura, mas que abusava de uma petulância e finura comparável à de seu cavaleiro trovador.

Era uma visão digna de espanto e de admiração. Eles percorriam o mundo pelas estradas mais longas e turbulentas. Quem bebe das águas barrentas empoçadas no mundo não pode mais voltar atrás. Vivia de aventuras e de novidades. Era abastecido pelos sustos recreados da vida e nem a fome, nem a sede e nem dificuldade alguma poderia fazer parar.

Alimentava o burro com os ratos largados nas noites, dos quais partilhava e dava de beber sua saliva. Não pedia, nem chorava, nem perguntava. Se não era feliz, pelo menos tinha se acomodado faz tempo.

Não importava viver, nem reclamar, nem voltar. Ele cruzava o mundo e rasgava caminhos pela lua até chegar no mar. Ele mantinha a pose e se respeitava. Abençoava suas rotas e as rotinas que aprendera a cultivar.

Ele era forte. Tão forte quanto parecia fraco de corpo. Era sábio como só a vida pode dignificar um homem. Era portador de quase mil dons e os gastava como quem tem pode gastar.

Vivia longe de amarras. Era viúvo de uma sociedade e de uma nação. Era tão solitário quanto pode ser um guerreiro que vive exilado com seu cavalo, e tão repleto como quem vive num monastério.

Era São Jorge e era glutão. Era a coruja e era o dragão. Ele era e ainda é.

Com sua lança reluzente riscava mapas na areia e seguia os caminhos do coração.

Ele respirava e respeitava a terra que lhe permitia passar. Era peregrino, era viajante, era desbravador sem rumo, era doente da sua verdade. Ele era dono das suas próprias narinas fracas e era deus da sua infinita liberdade.

Eu vi o tal passando nessa rua, nessa noite. Vi também por tardes e manhãs rodando por cantos assim. Por vezes o vejo nos bairros, com várias caras, vários burros, várias roupas. Ele é o cavaleiro sem nome, é o povo brasileiro, é o campeão do futebol.

Costumo olhar para ele, sem culpa e sem dó. O vejo como companheiro, como familiar, como amigo intimo até. O vejo gritando nomes e contando causos que só entende quem entende o que é sofrer. O vejo contando estrelas, mirando sereias e vendo o futuro de outrora lhe enxotar.

Ele é um cara digno. Merece meu respeito e meu orgulho. É cabra valente, forte como só.

Um dia vou ser como ele! Sei que vou. Se já não sou, um dia serei, e vejo até onde eu consigo chegar. Por hora observo a plenitude do velho cearense, bem vestido, que cavalga pelo mundo procurando um canto, um bando, ou uma coberta boa... Ou um desafio novo, ou um nome novo, ou uma nova história com que possa se contentar.

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